Numa manhã de 2005, eu estava no comitê de imprensa do Palácio do Planalto, onde trabalhava como setorista (como as redações chamam o repórter que cobre uma área específica) da Folha de S.Paulo, quando o telefone toca.

“Ana Flor? Tudo bem, aqui é o Clóvis Rossi.”

Fiquei paralisada.

Do outro lado da linha, ligando para comentar minha matéria sobre o acordo Mercosul-União Europeia, estava uma dos gigantes do jornalismo, autor de textos que eu acompanhava desde a faculdade. Do alto dos seus mais de 40 anos de experiência à época, Clóvis elogiou a matéria e fez perguntas, me incentivando a seguir no tema. Aproveitou e pediu minha impressões sobre o Planalto naquele início de governo Lula. Disse que iria a Brasília nas semanas seguintes e combinamos de nos encontrar. Desliguei em êxtase. 

Clóvis Rossi não fazia distinção entre jornalistas recém-chegados ou experientes.  Dono de uma das maiores franquias do jornalismo brasileiro, não se dava tanta importância. 
  
Passamos a nos falar e trocar comentários sobre reportagens com frequência (em geral eu pedindo alguma orientação, Clóvis dando dicas ou elogiando textos). 

Anos depois, quando a mesma Folha me designou para viajar a Honduras e ajudar na cobertura de uma saia-justa diplomática, em que o presidente deposto do país havia se refugiado na embaixada brasileira, liguei para Clóvis. Os conselhos dele foram essenciais para a cobertura de quase um mês e ecoam para mim até hoje.

“Leve sua curiosidade, faro e não se deixe ser capturada por nenhum dos lados da história”, me aconselhou.

Em coberturas internacionais, às quais ele se dedicou por décadas e que fizeram dele uma referência para colegas, fontes e leitores, Clóvis sempre manteve, mesmo veterano, a curiosidade e garra de um foca (como se chama o jornalista iniciante). Não havia quem dele não gostava, e mesmo seu pessimismo era sarcástico e bem-humorado. 

Míriam Leitão, que o conheceu na cobertura das viagens internacionais do presidente Figueiredo, lembra que ele ajudava os colegas e explicava temas áridos, fossem conflitos regionais, negociações ou o funcionamento do Fórum Econômico Mundial, em Davos.
 
“Foi um repórter por toda a vida”, disse-me ela.

Mesmo em coberturas competitivas, Clóvis era generoso com os colegas. Trocava ideias, dava sugestões, participava de coletivas, ajudava a abordar fontes que muitas vezes paravam só para atender um pedido dele. 
 
No Brasil ou no exterior, mesmo sendo “o Clóvis Rossi”, enfrentava as agruras das portarias (em que jornalistas aguardam as autoridades saírem de eventos), as longas horas em salas de imprensa e as dificuldades de deslocamento. 

Com quase 2 metros de altura, era usado pelos colegas para chamar a atenção de personagens que geralmente queriam fugir de declarações mas que, ao vê-lo, paravam para conversar com a imprensa. Clóvis não se apressava em perguntar. Deixava que os outros iniciassem a entrevista. Também não ficava bravo se um colega de outro veículo se aproximava para invadir alguma conversa sua.   

“Fosse foca, fosse experiente, ele sempre trocava idéia e ajudava, tinha disposição infinita,” lembrou Igor Gielow, repórter especial da Folha. “Quando cobrimos a morte do Papa, ele fazia questão de fazer as portarias comigo. Uma vez, debaixo de chuva no colégio Pio Brasileiro, onde estavam os cardeais antes do conclave, eu falei pra ele ir pro hotel. Ele riu e disse que nunca deixaria eu falar que ele arregou.” 

Clóvis Rossi “não se comportava como um medalhão”, disse Cristiana Lôbo, que conviveu com ele em coberturas presidenciais internacionais e em Brasília.

Ela lembra de uma longa espera dos jornalistas que aguardavam o desfecho de uma reunião entre Ulysses Guimarães e governadores, que definiria o apoio ao então pré-candidato do PMDB à presidência em 1989. 

“Clóvis, que já era um decano, ficou até o fim, sob o sol, aguardando cada governador sair para ouvir um a um.”  

Clóvis se formou em 1964 pela Cásper Líbero, à época a única faculdade de jornalismo em São Paulo, e começou a trabalhar no Correio da Manhã mesmo antes de se formar.  Passou por O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, IstoÉ e Folha, onde chegou em 1980. 

Foi chefe de reportagem, editor local e de esportes, editor-chefe, correspondente em Brasília, Buenos Aires e Madrid. Gostava mesmo era da reportagem. Recebeu diversos prêmios, entre eles o Maria Moors Cabot, uma das mais prestigiosas e antigas premiações jornalísticas, da Universidade de Columbia.
 
Nosso último encontro foi em novembro do ano passado, durante o G20, na Argentina. Sentado na imensa sala de imprensa com seu laptop, Clóvis se misturava a centenas de jornalistas de todo o mundo. Ao saber que ele estava na cobertura, uma autoridade brasileira fez questão de pedir um encontro. Queria conhecê-lo pessoalmente. Clóvis não se deixou levar pela vaidade. Aceitou o convite e aproveitou para desferir, sem dó, suas perguntas certeiras. 

Num tempo em que o jornalismo profissional precisa reafirmar sua credibilidade, a partida de Clóvis é uma perda para todos nós. Ficam, além da saudade, as lições de um dos melhores que nosso meio já produziu. 

Em 1980, Clóvis escreveu no livrinho “O que é jornalismo”:  

“Jornalismo, independente de qualquer definição acadêmica, é uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos: leitores, telespectadores e ouvintes. Uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra.”

ARQUIVO BJ

Otavio Frias Filho, o mentor do pluralismo da Folha