Não sei se é a tal história de que o universo conspira a favor — ou de que não existem ‘coincidências’ — mas conheci Satyanatha ‘por acaso’ numa fila de autógrafos, na noite de lançamento de um livro que eu resenhara.
 
10726 cd3c9abb 0b9d f88a e104 4df499791717Um monge sempre chama a atenção.  Com o cabelo todo raspado, a cabeça emana luz — literal e figurativamente. A bata branca também o distinguia na fila, onde, ainda que alguns de nós usássemos ternos e outros, roupas informais, éramos todos absolutamente iguais em nossas urgências e angústias — exceto o monge, aquele polo de luz sorridente esperando sua vez na rabeira da fila.
 
“Os últimos serão os primeiros,” ensina aquela outra religião.
 
Satyanatha passou sete anos e meio no monastério — “uma cabana no meio do mato” — mas em dois pontos distintos do globo: um no Sri Lanka e outro no Havaí.  Este último, Kauai Aadheenam, fica aos pés de um vulcão extinto. 
 
Um dia, começou a ouvir uma voz que lhe dizia para sair dali e ensinar as pessoas sobre a vida monástica.
 
Com a ideia de que todo mundo pode ser um pouco monge, voltou para São Paulo e tentou se reinserir na vida urbana.  Propôs à Vivo um aplicativo ensinando 907 meditações diárias.  No ar há dois anos, já teve 1,2 milhão de downloads.
 
“Uma mãe me disse que usa o aplicativo porque ela levanta cedo e vai acordar os filhos, e eles fazem muita manha para se vestir.  ‘Se eu medito, eu não brigo com eles, eu dou amor. Se eu não medito, a manha deles me irrita’.”  
 
Os monges não gostam de falar do passado porque a tradição é enfatizar o presente, mas, antes de se tornar ’Sat’ — como os amigos o chamam — ele teve que nascer Davi Murbach, no interior de São Paulo, estudar engenharia de computação numa grande universidade e trabalhar numa das melhores consultorias do mundo. 
 
Começou a ler sobre espiritualidade aos 17 anos e, aos 22, trocou o capitalismo pelo monastério.
 
 
O que é ser monge?
 
Ser monge é um estado de consciência em que as coisas te acontecem e você guia como aquilo vai repercutir em você.  É um estado em que você coloca a paz acima do conflito, prioriza o amor acima da inveja ou da raiva.
 
Mas a humanidade confunde muito método e meta, e associa ser monge com as técnicas que os monges usam. Então, se usa uma roupa engraçada, ‘deve ser monge’. Se está fazendo celibato, mantras, meditação, ‘é monge’.  Mas na verdade, o monasticismo é muito mais rico do que isso.
 
Para você se tornar um mestre zen no Japão, por exemplo, você tem que ter uma esposa, senão consideram que a sua paz não é forte o suficiente. Se você quer se tornar um monge da tradição indiana jainista, você tem que andar nu (eles têm um grupo chamado ‘digambara’, que em sânscrito significa ‘vestido de céu’).
 
Há vários métodos, mas o objetivo de todos é o mesmo: a consciência do monge.  Alguém que prioriza mais a paz interna do que qualquer sucesso exterior.
 
Como você se apoia financeiramente sendo um monge fora do monastério?
 
Eu atendo pessoas para dar aula de meditação e sugiro um valor.  Aqueles que podem pagar me dão, e aqueles que não podem não me dão. Assim eu nunca fecho a porta para ninguém e nunca exijo dinheiro — e, afortunadamente, nunca me faltou.  É muito difícil eu manter aqui a vida que eu tinha no monastério. Estou me adaptando para ser um monge infiltrado na cidade.
 
Como assim é difícil manter a vida que você tinha no monastério?
 
Se eu quisesse uma escova de dentes no monastério, eu escrevia um bilhete: ‘Por favor, uma escova de dentes, cerdas macias.’ E punha esse bilhete numa caixinha. Aí, em algum momento, o próximo monge que fosse à cidade ia pegar dinheiro — eu sequer encostaria nas cédulas — compraria uma escova, e ela ia aparecer no meu pequeno armário.  Não havia ali uma necessidade de sustento financeiro. O monastério é como uma estufa: as flores ficam bonitas ali na estufa.  O monastério é extraordinário para você se interiorizar.  Mas nos últimos dois anos eu comecei a ter uma inquietação que dizia assim, ‘Saia e ensine essas técnicas que te fizeram tão bem’.  
 
Qual é sua religião?
 
A religião shivaísta é um ramo do hinduísmo e uma linhagem do Sri Lanka, mas hoje eu não sou um monge ‘indiano’, a linhagem não é importante.  As religiões são como se a luz passasse por um vitral.  Cada religião é uma cor. Eu gosto é da luz. As religiões são métodos para alcançar essa luz.  
 
Algo aconteceu para mim, e eu vim tentar ensinar as pessoas, mas como adaptar isso em São Paulo?  
 
Quando eu estava estressado no monastério…. Bom, por que alguém se estressa no monastério?  A vaca fugia e comia a minha roupa. Isso acontecia.  Ela ia direto no varal e comia as minhas roupas.  Elas adoravam as roupas brancas. [Os monges que fizeram o voto de ficar lá a vida inteira se vestem de laranja.  Os aprendizes usam branco.]  Acho que as vacas não gostavam da tinta das roupas e preferiam o branco.  Era uma vaca gourmet que comia as minhas (risos).
 
Por que você deixou o monastério? 
 
O monastério se completou como uma faculdade onde você se gradua e pode se tornar professor lá ou ir para o mundo.  Eu vim para o mundo. Mas como me manter monge? Será que posso dar aulas e ganhar dinheiro?  Eu fui testar.  Posso, contanto que eu nunca feche a porta para ninguém.  Às vezes, eu dou aula para pessoas com muitas posses e que são conhecidas. 
 
Aí eles me perguntam, ‘Quanto é?’ Eu falo, ‘Depende.  Se você puder pagar é tanto, se não, é zero.”   Aí a pessoa me olha com cara de ‘você sabe com quem está falando?’ Eu digo, ‘Eu sei com quem estou falando.  E você, sabe quem você próprio é?’ Somos todos humanos e estamos buscando nossa identidade.
 
Como é a transição da vida monástica para a vida preso no trânsito?
 
Venho me adaptando. Aluguei uma casinha em São Paulo. É muito difícil para mim estar lá, porque não tem aquela atmosfera da natureza que o monastério tinha. Não posso acordar de manhã e nadar no lago, mergulhar nu na cachoeira e ninguém ver.  Hoje estou aqui, mas me parece que aqui eu sou mais necessário.
 
Eu fui trocando os meus votos — votos são uma coisa muito rígida — por princípios.  Não tenho voto de pobreza, mas tenho o princípio de simplicidade.  Eu tenho quatro camisas e dois chinelos, e um quebrou hoje.
 
Um aluno de meditação, que é banqueiro, um dia olhou para mim e falou: “O teu sorriso constante me irrita.” 
 
Ele falou sério?
 
Ele tem helicóptero, mas precisa estar de bem com a vida.  O ser humano integrado é muito mais feliz, mas as pessoas não se integram, não olham para dentro.
 
Antes de eu ir para o monastério, trabalhava numa consultoria.  Um dia, um sócio da empresa me perguntou quais os livros mais importantes que eu já li na vida.  Por dentro, eu pensei em três:  “Masnavi”, de um poeta persa místico do século 12,  “Dançando com Shiva”, de um mestre indiano, e outro livro sobre como melhorar o mundo.  
 
Mas eu não podia dar aquelas respostas, porque era só espiritualidade. Eu falei alguma outra coisa e talvez tenha enganado ele, mas eu não enganei a mim.  Eu saí de lá e falei, ‘não consigo mentir para mim, eu não sou isso.’  Aí entrei numa crise e fiz o que uma pessoa faz quando quer entrar no monastério: mandei um email para um monge.  Falei para eles, ‘Eu acho que sou um monge. Quê que eu faço?’
 
E eles me deram uma tarefa muito difícil:  ‘fique um ano aí no Brasil desligando-se da namorada, do trabalho.. desplugue-se de tudo’. E é uma vida de inverno, né? Os galhos vão secando, tudo vai encolhendo… fiquei numa leve depressão… E aquilo testa se eu realmente queria ir.  E no final de 11 meses, eu fui.  E foi uma grande aventura.”