Falecida em 2017, aos 80 anos, a artista carioca Marília Kranz marcou época. Na vida pessoal, foi uma personalidade na cidade que tanto amava, figurando frequentemente nas colunas do Jornal do Brasil (era a Madame K, personagem do colunista Apicius dos anos 80/90) e amiga querida dos intelectuais.

Inteligente e articulada, era musa de muitos artistas. Ativista política, foi presa durante a ditadura, escondeu em seu ateliê estudantes procurados pela ditadura, e fundou com Fernando Gabeira o Partido Verde em 1986. Nas artes, foi pintora, desenhista e escultora.

Apesar da qualidade inconteste de suas obras, Marília teve menos sucesso em vida do que merecia, como sua contemporânea Wanda Pimentel e tantas outras pintoras figurativas da sua geração. Mais recentemente, galerias e museus como o MASP têm se dedicado a resgatar obras de importantes artistas do passado, sobretudo mulheres que não tiveram o espaço devido.

A partir de 9 de março, a galeria Galatea, que representa as herdeiras de Marília, apresenta em São Paulo parte do acervo familiar da artista, na exposição Marília Kranz – passional como um postal carioca.

É raro ver uma artista com tamanha coerência entre sua vida pessoal e atuação artística – como a própria Marília dizia, os dois se confundiam constantemente.

Amante da natureza e de sua cidade, a veia ambientalista de Marília aparecia tanto em sua militância política quanto em seus desenhos, sem no entanto produzir uma arte panfletária.

Pioneira no uso de materiais industriais nos anos 70, criou placas e esculturas em poliuretano e fibra de vidro pintadas com pintura automotiva.

Em seguida retornou às telas, inicialmente presa à rigidez geométrica e a uma paleta de cores fechada. Aos poucos, foi adicionando formas onduladas e vazadas, e nos anos 80 passou a se dedicar às paisagens da Cidade Maravilhosa, como as Ilhas Cagarras, a Pedra da Gávea, o morro Dois Irmãos, os recortes das montanhas e da lagoa, ressaltando a sensualidade das formas e o que chamava de a “luminosidade forte, clara, luz de sol a pino, luz do Rio de Janeiro.”

Mãe de três filhas, Marília escreveu num artigo no Jornal do Brasil que “como mulher e profissional tive que misturar tudo: tinta, filhos, listas de compras…nunca soube o que é a tal ‘paz de espírito’ para criar, trabalhar. Aprendi a fazer tudo junto, no tumulto.”

Não era o que se via em suas obras, que tinham uma organização geométrica e uma luz que emanava calma a partir da cor suave em tons rebaixados.

A maneira aberta e direta com que lidava com a sexualidade feminina era inédita para a época, o que se refletiu em sua pintura com elegância. As paisagens capturavam movimentos de plantas e frutas que revelavam uma sensualidade latente, parecida com o corpo humano. Caules, pétalas, plantas carnívoras – um erotismo à flor da tela ainda que sob a delicadeza das cores escolhidas.

Nos anos 90, sua arte se aproxima da artista americana Georgia O’Keeffe, que ela considerava uma irmã de alma. No livro sobre Marília, Frederico Morais explica que “o trio O’Keeffe, Tarsila e Marília têm vários pontos comum, tanto na obra pictórica quanto em suas histórias de vida.”

Millôr Fernandes a definia como refinada e provocadora.  Em entrevista a O Globo em 2003, Marília disse: “A trajetória da mulher do meu tempo é completamente revolucionária. Nós fizemos a grande revolução do século passado, que foi a liberação sexual. Eu, por exemplo, nunca dei para um homem, eles é que deram para mim.”