O texto abaixo é a transcrição de uma entrevista de Marcos Lisboa ao canal Bem-Estar Capital, um podcast e canal do Youtube focado no debate de políticas públicas, governança e liberdade.  Trata-se de um texto atemporal, de alguém apaixonado pela sua profissão, e que, em nossa opinião, pode inspirar jovens economistas a buscar a excelência.

 

Adoro conversar com aluno. Eu tenho esse estilo meio ‘português direto’, então não reparem, mas eu acho mesmo que a geração de vocês tem que estudar.  Não confiem em ninguém, muito menos em mim. Desconfiem de tudo que eu falo. Vão atrás da literatura, vão atrás da evidência, conheçam mais — e não se percam nesse debate de revista Caras que domina o debate público brasileiro com frequência.  Essas opiniões ligeiras, pra lá e pra cá…  Corram atrás das evidências.   

A economia tem um lado delicioso.  Intelectualmente, ela é uma ciência muito específica. A economia é a ciência que estuda dilemas, escolhas difíceis. “Se eu fizer por esse caminho, vou ter esses benefícios e esses custos.  Por ali, são esses outros benefícios e custos.”  Para quem gosta disso, tem um livrinho muito bacana do Gary Becker, Teoria Econômica, que ele dava no primeiro ano do doutorado lá em Chicago.  

A economia estuda dilemas e, depois disso, como se dá a interação social. É por isso que há essa multiplicidade de modelos de jogos, cooperativos, não cooperativos, equilíbrio geral, assim, assado, mercados completos, incompletos, e as escolhas pessoais — como lidar com dilemas — você pode ter uma pessoa mais racional, racionalidade limitada, você pode ter variações dos fatores de desconto no futuro, enfim…  

A Teoria Econômica por si só já é fascinante.  Você pega os teoremas do Arrow nos anos 50, o Teorema da Impossibilidade da razão social, os teoremas do Aumann, ‘a impossibilidade de concordar em discordar’,  tanta coisa… você vê os resultados teóricos e fica zonzo.  “Caramba!  Nunca esperei isso!  Quer dizer que, nestas condições, esse resultado vale? Mas o que está por trás disso?” 

E aí isso abre uma agenda imensa de pesquisa….  É uma coisa assim, genial.

E por outro lado, a economia exige um diálogo permanente com os dados — como você testa? como avalia a veracidade?  Você está sempre recheado de dúvidas, mas você está sempre aprendendo alguma coisa.  “Naquele caso isso funcionou.  Naquele outro, não foi bem assim.  No Chile foi assim, na Colômbia foi assado.”  E tem que ter essa disciplina de estar sempre buscando os dados, as evidências, o outro caso. 

Esse é o lado fantástico da economia. É um método de trabalho que tem essa preocupação de entender dilemas, de entender como se dá a interação social (e aí você modela todas as formas de interação social que a gente é capaz de imaginar, porque a gente não sabe como é o mundo, ou que problema vai tratar no mundo) e ao mesmo tempo, tem essa obsessão com os dados e os testes.  

Foi isso que permitiu à economia entrar em tantos ramos do conhecimento.

Muito mais do que uma visão liberal ou não liberal — ou qualquer um desses lugares comuns que tem por aí — é essa maneira de tratar o problema que diferencia a economia.

E é por isso que a economia entrou na ciência política, entrou na sociologia, entrou no estudo da violência, da discriminação.  Sobretudo, pelo rigor da honestidade intelectual.

Um dos heróis da profissão é o Jim Heckman, que ganhou um Nobel. Um econometrista impressionante, com uma obra monstruosa.  Depois do movimento pelos direitos civis, no sul dos EUA, nos anos 60, houve um aumento na renda dos trabalhadores negros.  

A tese era de que, depois que as escolas do Sul foram dessegredadas, o aumento da escolaridade levou a aumento de salário dos americanos negros.  Ou seja:  acreditava-se que discriminação existia apenas no acesso à educação, porque, no mercado de trabalho, se um trabalhador fosse mais produtivo que outro, o empregador contrataria o mais produtivo. Era um ponto que alguns economistas de Chicago faziam: “Não tem como discriminação racial sobreviver no mercado de trabalho:  se Antonio produz 100 e João produz 80, e eu NÃO contrato Antonio — sei lá, pela cor da pele ou do cabelo — alguém contrata, eu vou quebrar, e o outro vai sobreviver.”  No limite, o argumento era esse.

Durante anos, Heckman tentou demonstrar com seus alunos que essa tese estava certa. Que você podia associar todo o aumento da renda dos trabalhadores ao aumento da escolaridade.  Roda teste pra cá… pra lá… e não conseguia demonstrar.  Aí ele falou, “Já que não consigo, deve ter um problema.  Vou por outro lado.” 

No final, não há evidência causal para qualquer lado. Mas Heckman consegue uma grande quantidade de evidências circunstanciais de que o argumento mais provável era o oposto do que ele inicialmente acreditava. Como comenta em um artigo posterior, ele vai construindo o argumento, como se dissesse “Eu devia estar errado. Não tenho evidência clara de causalidade, mas a melhor que tenho é que eu devia estar errado e que, de fato, tinha um problema grave de discriminação no mercado de trabalho.”  Aí ele tenta especular como seria possível existir discriminação com concorrência.  

Isso, para mim, é honestidade intelectual.  Levar a sério os modelos, levar a sério os dados, não brigar com a evidência, e querer aprender com a experiência.  Quando eu li esse artigo dele, eu pensei, ‘Esse cara já estava no topo da minha escala de valor como economista, e ele conseguiu me mostrar que tem um degrau a mais.’”