A base da vida civilizada é a adesão ao contrato social.
É apoiando-se nele que, para evitar o predomínio da Lei do Mais Forte, os cidadãos cedem ao Estado o monopólio do uso da força, e concordam em dirimir suas desavenças no sistema judicial.
Na noite desta sexta-feira, o ex-Presidente Lula fez questão de não se entregar à Polícia Federal para que se cumprisse o prazo dado por um juiz federal.
É possível que a ordem seja cumprida — voluntariamente ou não — nas próximas horas, mas Lula fez questão de não respeitar o prazo determinado.
Sob qualquer ângulo, o desrespeito a uma ordem judicial é uma violação da ordem institucional e do princípio civilizatório que permite ao Estado funcionar.
Se Lula pode tergiversar com a Justiça, por que não o próximo assaltante de banco, o fraudador de colarinho branco, o assassino comum?
No caso do ex-Presidente, o espetáculo de vitimização é acompanhado pelos inocentes úteis que lhe fazem companhia na sede do sindicato, homens e mulheres maduros que no entanto preferem os mitos aos fatos, as narrativas de autojustificativa à realidade.
Mas há um ângulo desta decisão ousada e nefasta de não se entregar pelo qual Lula deve ser elogiado: a coerência de suas ações nos últimos 30 anos de vida pública.
Os filiados ao PT e seus simpatizantes mantém, com disciplina e fervor, o monopólio da verdade.
Em todas as suas interações com o mundo, não importa quais sejam as circunstâncias, só existe uma regra a ser lembrada: o PT está sempre certo. Se, por um acidente do destino ou distorção no campo magnético, o PT um dia estiver errado, é porque a realidade foi fraudada, sabotada ou abduzida por alienígenas.
Quem tem memória se lembrará, e quem não tiver, procure no Google.
O PT votou contra a Constituição de 1988, aquela que marcou a redemocratização do Brasil e que Ulysses Guimarães batizou de ‘cidadã’: uma constituinte que errou muito, mas cujo produto final expressava um mínimo denominador comum essencial para aquela jovem democracia.
Em seguida, o PT foi contra todos os planos econômicos que tentaram debelar a hiperinflação, incluindo o Plano Real, que acabou sobrevivendo a inúmeras crises internacionais e está aí até hoje, em que pese a implosão do Estado desenhada por um governo… do PT.
O Real elegeu um presidente tucano e, fiel à regra dourada, desde o primeiro dia o PT gritou “Fora FHC” — um slogan que, quando outros aplicaram ao Governo Dilma, o partido logo chamou de golpismo.
E agora, quando a Suprema Corte do País — um colegiado tão problemático quanto a própria sociedade brasileira — decidiu negar um habeas corpus ao seu líder supremo, o PT mais uma vez está certo: a ordem é ‘resistir’ à legalidade.
O fato desta rebeldia vir de um líder popular que pôde se eleger (duas vezes) graças à existência do Estado de Direito — e cuja integridade física esteve ameaçada nos anos de exceção do regime militar — adiciona um componente de opróbrio singular a esta farsa.
Um estadista faria sacrifícios pessoais para que as instituições fossem preservadas. Mas Lula não cabe no modelo.
O homem que diz amar o povo coloca seu futuro pessoal acima do futuro da Lei e da paz social no Brasil.
Para Lula, ele é sempre a vítima: da pobreza, das elites, da imprensa, de Dilma Rousseff, da Lava Jato.
Mas Lula não está errado, pois isso violaria o Mandamento No. 1 do PT: Amar Lula sobre todas as coisas.
Deve ser extenuante estar certo o tempo todo…
Que a farsa desta noite tenha pelo menos uma consequência colateral benéfica: isolar alguns caciques do Judiciário que, como Lula, aceitam perpetuar a impunidade no Brasil.