Há mortes que são mais abundantemente morte que outras. A de Luiz Melodia atingiu-me diretamente no peito, como murro, como estilhaço, como um tiro de bala nada perdida. Tente passar pelo que estou passando.

Melodia era de minha geração. Meu contemporâneo. Grande parte de minhas ilusões e desilusões, de minha precária biografia, nos anos de juventude e primeira maturidade, poderia ter como trilha sonora a música suingada, bluesada, inesperada de Melodia. Baby te amo, nem sei se te amo. Dos contemporâneos, foi dele a música que me tocou como saída do fundo do peito de minha geração.

10305 65991fe8 133e 0000 0000 b341208dd7b7Posso contar minha vida por meio de minhas paixões musicais. Elis, Nara; Nara, Elis. Mas minha formação intelectual teve como referência de raiz, é, de raiz, o tropicalismo. O tropicalismo e o entorno musical da época, com Caetano, Gil, Milton, Chico, Raul Seixas. Os versos de Wally Salomão, de Torquato Neto. Betânia, Gal; Gal, Betânia. Melodia também se formou, em parte, desses encontros. Sua poética encontrou refinamento, acabamento final, na interação com Waly Salomão e Torquato Neto.

Recentemente, vi, emocionado, Luiz Melodia contando seu primeiro encontro com Gal, na série-documentário sobre a Fatal, O nome dela é Gal. Chorei com ele. Sei, sabemos, como esses encontros imprevistos são life-changing, mudam nossa vida, seja para projetar-nos, seja para salvar-nos de descaminhos irresistíveis.

A música é parte da minha vida e da minha frustração. Ela me acampanha passo a passo, mas não tenho compasso. Não canto, mas me encanto. Não afino, mas ouço afinadamente. Música, disse Schopenhauer, transcende as idéias, aproxima-nos do sublime com a precisão da matemática, capturando com a poesia o que tem real significado na existência humana. Porque a música não expressa uma alegria particular ou uma experiência concreta de dor ou horror. Ela as expressa abstratas, em si mesmas. É por isso que a música de Melodia, de Caetano, com sua poética ou a poética de Wally ou Torquato, nos falam tão funda e pessoalmente. Por que nos transcendem, nos assombram.

Foi abundantemente morte a partida de Melodia. Precoce e próxima. Lembrou-me uma boutade de Marcito, meu amigo Márcio Moreira Alves — tenho o privilégio de ter amigos do peito de gerações anteriores à minha. Marcito tratava com alarmada ironia a partida de contemporâneos seus. “Minha geração começou a ser convocada”, ele dizia. E dava uma de suas gostosas gargalhadas, para espantar o pensamento seguinte. Foi abundantemente morte, porque me pegou num dia em que estava desprevenido e quando Míriam me ligou para dizer “perdemos nosso Luiz Melodia”, senti a fisgada e pensei que minha geração começou a ser convocada por nosso poeta popular, insensato, transgressor, de versos nonsense que faziam todo sentido para nós. A fisgada me trouxe a dolorosa constatação de Caetano. Como é fina a matéria vida.

Ao saber da morte de Jeanne Moreau, lembrei-me dos tempos de cineclube e me dei conta de que ela fazia parte de uma era que não é mais. Seu mundo se dissipou nas mudanças já aceleradas das três décadas finais do século 20. Essas, nas quais de formou e se firmou a geração de Luiz Melodia. Minha geração também. Nós somos a ponta da transição. Nossa era é e não é mais. Parte dela não funciona mais e os novos que vão surgindo ainda não fazem sentido completo. Por isso ainda fazemos.

Melodia continua a ser, mas não mais. Agora, ele é música na nuvem, enquanto for eterna a nuvem. Façam backup amigos. Agradeço, mas prefiro começar pelo recomeço, ouço melodioso Luiz cantar o verso de Torquato. Não vou lamentar. Lamento muito, mas só vou lembrar. Ficarei com o que de fato sei que aconteceu. Arranje algum sangue e escreva num pano: Pérola Negra, todos te amamos.

 

Sergio Abranches é cientista político. Este texto foi publicado originalmente no site do autor.

O Brazil Journal sugere aos leitores a música ‘Cruel’, no vídeo abaixo.