O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) é um destino obrigatório quando se visita o Rio de Janeiro. Primeiro, em função da beleza ímpar do imóvel, um prédio art déco de 20.000 m² localizado no centro da cidade. Segundo, pela qualidade das exposições que o CCBB hospedou nesses últimos 30 anos.

Da safra atual, a mais espetacular é a mostra Nise da Silveira – A revolução pelo afeto.

Nise foi uma médica psiquiátrica — a única mulher a se formar em medicina em uma classe de 157 alunos em 1931 — que questionou os tratamentos agressivos utilizados na época com os pacientes considerados ‘loucos’.

Ao invés de dopá-los e encarcerá-los, Nise criou um ateliê de artes no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, subúrbio do Rio. As obras produzidas eram uma forma de acessar o mundo interno dos pacientes e objeto de estudo científico. Em 1952, Nise fundou o Museu de Imagens do Inconsciente para ampliar sua pesquisa. Com um acervo de mais de 350 mil peças, o museu tem a maior coleção do gênero no mundo, e suas principais obras são tombadas pelo Iphan.

A exposição percorre a vida da Dra. Nise, contextualizando seu trabalho em relação aos tratamentos psiquiátricos da época, e mostrando o impacto da arte para os internos e para a comunidade artística da época.

Com curadoria do Estúdio M’Baraká, a mostra do CCBB dá a merecida dimensão a uma das maiores cientistas do Brasil, reconhecida internacionalmente.

São mais de 90 obras dos clientes, como a doutora os chamava, como Adelina Gomes e Emygdio de Barros, ao lado de peças de Lygia Clark, Abraham Palatnik e aquarelas e fotos de Carlos Vergara. As obras estão acompanhadas de textos informativos e de trechos de livros acadêmicos que guiam o visitante com muita facilidade pelas teorias de Carl Jung e o vanguardismo trazido por Nise.

Um pouco antes de Nise, em 1933, o psiquiatra Osório Cesar, então marido de Tarsila do Amaral, organizou com o artista Flávio de Carvalho um experimento parecido, que culminou com a Semana dos Loucos e das Crianças, que expôs produções artísticas dos internos do hospital de Juquery. Inspirados neles, mas com muito mais profundidade e impacto, Nise e o artista Almir Mavignier criaram o ateliê de pintura no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro em 1946.

O trabalho ali desenvolvido influenciou o movimento neoconcreto, que apareceu um pouco depois com Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape.  Além do famoso crítico Mário Pedrosa, o ateliê era também frequentado por importantes artistas nacionais como Ivan Serpa e Abraham Palatnik.

Palatnik abandonou a rigidez da composição e aproximou-se da arte abstrata e cinética depois de conviver com os artistas internados. Nas palavras do artista: “quando eu cheguei lá (no ateliê de pintura), (…) fiquei chocado com aquilo, eu fiquei tão arrasado porque afinal eles não passaram quatro anos na Escola de Artes. E as obras fantásticas, de uma densidade, cores, e eu comecei a logo me questionar, a minha atuação era de estímulos externos e eu senti que aquilo não tinha nada de externo. De repente me deu uma sensação que eu tinha que abandonar a pintura.”

Passou, então, a ler sobre psicologia e a fazer experimentos com luz e movimento, que deram origem aos Aparelhos Cinecromáticos – caixas com lâmpadas e telas coloridas que se movimentam acionadas por motores. Durante a I Bienal de São Paulo, em 1951, a comissão internacional não sabia como qualificar a obra Aparelho Cinecromático, já que não era escultura nem pintura, e lhe concedeu uma menção honrosa pela originalidade. Palatnik é um dos artistas brasileiros mais valorizados no mercado, com obras ultrapassando o milhão de reais, como as que estão à venda na feira SP-Arte, que acaba hoje e aconteceu este ano em um espaço novo, uma fábrica metalúrgica desativada na Vila Leopoldina.

Voltando ao CCBB no Rio, a exposição nos faz questionar a supervalorização da racionalidade e como a criatividade requer liberdade. Se atualmente discutimos a importância da diversidade, flexibilidade e acolhimento no ambiente de trabalho e nas escolas, o legado de Nise tem muito a contribuir para o debate de 2021.

Quem não estiver no Rio até o dia 15 de novembro, quando a exposição se encerra, poderá fazer o tour virtual no endereço www.nisenoccbb.com.br.

Pena que o virtual não permite, ao final, parar no segundo andar do prédio do CCBB-RJ e comer os maravilhosos biscoitos-leque da Confeitaria Colombo.  Mas aí já é outro tipo de arte…

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.