Um tema dos mais convencionais – a brevidade da vida – ganha um tratamento desconcertante em “A próxima aldeia”. Nessa narrativa de apenas sete linhas, um homem idoso ensina que a vida é “espantosamente curta”: “Eu por exemplo não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que (…) até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa”. 

Em Um médico rural, livro de 1919, “A próxima aldeia” é sucedido pelo conto “Uma mensagem imperial”, que também trata de distâncias incomensuráveis. Nessa história, um imperador em seu leito de morte dita uma mensagem para ser levada a um súdito de uma província remota. Mas o mensageiro vê-se diante de uma tarefa impossível: será muito difícil cruzar os incontáveis salões do palácio, e mesmo que ele consiga sair, terá de atravessar pátios e mais pátios, e então outro palácio, e mais pátios, e depois a cidade onde “ninguém penetra, muito menos com a mensagem de um morto.”

Cem anos nos distanciam do autor dessas histórias tão esquisitas quanto fascinantes. Franz Kafka morreu de tuberculose em 3 de junho de 1924, em um sanatório nos arredores de Viena, a um mês de completar 41 anos.

A consagração do tcheco como um dos escritores mais originais e influentes do século XX foi póstuma. Judeu, socialmente desajustado – era um corpo estranho até em sua própria família – ele ganhou a vida como funcionário de companhias de seguro em Praga, ofício que detestava (aliás, Kafka odiava tudo o que não fosse literatura, segundo registrou em seu diário).

Os poucos livros que publicou em vida tiveram repercussão limitada, e ele deixou ao amigo Max Brod instruções para destruir milhares de páginas inéditas.

Brod desobedeceu a vontade de Kafka. Graças a ele, hoje, nesta aldeia inalcançável conhecida como Brasil, o leitor que quiser celebrar o centenário de Kafka está bem amparado.

Publicadas pela Companhia das Letras, as respeitadas traduções de sua ficção por Modesto Carone estão nas livrarias. Em 2021, a Todavia lançou os Diários, em tradução de Sergio Tellaroli.

Como bem diz o biógrafo Reiner Stach no excelente Kafka: os anos decisivos (Todavia), a obra de Kafka pode parecer “um campo de ruínas”. Ela é repleta de projetos inconclusos como o romance O Castelo, cuja redação o escritor abandonou bem no meio de uma frase. Mas dessas ruínas ergue-se milagrosamente um universo ficcional singular, ao mesmo tempo estranho e familiar. 

A burocracia é a estrutura opressiva desse universo. Seus habitantes vivem sob códigos legais incompreensíveis e implacáveis. Josef K., o protagonista de O Processo, jamais saberá de que crime é acusado.

O efeito inimitável da arte de Kafka reside em boa parte na distância entre sua prosa realista e as situações sinistras que ela descreve. Como bem definiu Jorge Luis Borges, Kafka “redigiu pesadelos sórdidos em prosa límpida”.

Isso fica evidente na magistral abertura de seu livro mais conhecido, A metamorfose, de 1912. A primeira frase informa, sem explicações, que o caixeiro viajante Gregor Samsa acordou de “sonhos intranquilos” convertido em um “monstruoso inseto”. Em seguida, vem uma descrição do modesto quarto de solteiro de Samsa. O absurdo é tratado com absoluta naturalidade.

Há humor em Kafka, ainda que um humor cruel. Quando leu o primeiro capítulo de A metamorfose para seu círculo de amigos em Praga, Kafka arrancou gargalhadas de todos os presentes.

Mas do que exatamente rimos? O que Kafka está nos dizendo enquanto nos diverte e aterroriza?

Não existe resposta unívoca. Kafka foi submetido às mais variadas interpretações – teológicas, psicanalíticas, cabalísticas, existencialistas, marxistas – mas se manteve impenetrável a leituras definitivas. 

Uma leitura histórica forte encontra nos seus pesadelos uma prefiguração do horror nazista que tomaria a Europa 15 anos depois de sua morte. A máquina de tortura de Na colônia penal presta-se bem a essa interpretação. 

Mas Kafka não criou distopias totalitárias: de um modo indefinível e perturbador, seu mundo – esse mundo de distâncias intransponíveis, em que todos esperam por mensagens que jamais chegarão  – parece ser o nosso mundo.   

Autor obscuro em vida, Kafka hoje está cercado de um folclore que tem pouco a ver com sua literatura. Mas por mais que se tente reduzi-lo ao doidão que contou a história de um sujeito que vira barata, os bons leitores sabem que estão diante de algo muito maior quando encontram ou reencontram Gregor Samsa.

Que, na verdade, se transforma em um inseto similar a um besouro.