“Recomendo este artigo de Bráulio Borges, economista da FGV, sobre a dinâmica recente das contas públicas,” tuitou Fernando Haddad na quinta-feira passada.
Abaixo do comentário, o ministro postou o link para o texto A mudança das metas e o desafio da sustentabilidade fiscal brasileira, publicado por Bráulio no site do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getúlio Vargas.
A sugestão de leitura provocou um pequeno alvoroço na Faria Lima. Haddad ganhou elogios do mercado e ataques da esquerda raiz.
Tudo porque, entre diversos pontos analisados no artigo, Bráulio afirma que, com relação aos gastos previdenciários, “um elemento crucial para conter a sua expansão seria a desvinculação do piso previdenciário (e mesmo de outros benefícios assistenciais) do salário mínimo nacional.”
Foi esse trecho que causou mais barulho. Na interpretação de alguns analistas, Haddad estaria sinalizando a disposição de comprar a briga política para extinguir a vinculação dos valores – um quase tabu para os petistas.
Essa indexação automática representa uma das maiores causas do desequilíbrio nas contas do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o sistema previdenciário dos trabalhadores da iniciativa privada. Os aumentos reais do salário mínimo – uma política retomada pelo atual governo – aprofundam o desequilíbrio nas contas públicas.
“A despesa previdenciária já consome quase metade do total da despesa da União e não é totalmente financiada,” Bráulio disse ao Brazil Journal.
Economista da LCA e pesquisador associado do Ibre/FGV, Bráulio mostra no artigo que os benefícios previdenciários foram os principais responsáveis pelo aumento nas despesas do governo federal nas últimas décadas. Se eles forem excluídos do cálculo, os gastos estão em níveis semelhantes ao que eram em 1988, quando a nova Constituição criou a vinculação.
Na entrevista a seguir, Bráulio comenta a necessidade de reverter o déficit primário, critica as flexibilizações do novo arcabouço fiscal e explica por que os benefícios previdenciários não deveriam seguir os reajustes do mínimo – apesar de não acreditar que existam condições políticas para colocar essa reforma em pauta no momento.
O que o motivou a escrever o artigo recomendado pelo ministro?
O ponto de partida foi a decisão do governo no envio do PLDO (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias) ao Congresso de revisar para baixo as metas fiscais para 2025 e 2026. Considerei que foi negativo. A conta é simples. O Brasil precisa de um superávit primário de pelo menos 1%, 1,5% do PIB todos os anos para estabilizar a dívida pública. Quanto mais tempo a gente ficar abaixo disso, mais a nossa dívida vai crescer e por mais tempo. E aí a questão é, a nossa dívida hoje é alta ou é baixa? Nossa dívida é alta.
Tem muita gente que diz que não é tão alta assim, que isso é terrorismo fiscal.
Tem várias discussões sobre nível da dívida, se tem um determinado nível a partir do qual isso é ruim para o país. Vou usar um argumento mais direto.
O Brasil perdeu o grau de investimento lá em 2015. Os países emergentes que estão ali no primeiro nível do grau de investimento têm uma dívida pública de 55%, 60%. O Brasil está com uma dívida pública de 80%. Se algum dia quisermos voltar a ser grau de investimento, precisamos controlar a dívida.
Ser grau de investimento tem várias vantagens; por exemplo, podemos nos financiar vendendo título público para fundo de pensão internacional. Ter o selo de bom pagador tem implicações positivas, efetivas. Se a gente quiser voltar a ter grau de investimento, a nossa dívida pública precisa cair para pelo menos uns 60% do PIB. Só que para cair primeiro ela tem que parar de subir.
Ela vem subindo – praticamente sem parar – desde 2015. Hoje está perto de 80% do PIB, ou seja, cada vez mais distante de 55%, de 60%. Daí a necessidade de gerar um superávit primário que pelo menos num primeiro momento estabilize a dívida, para num segundo momento, gradativamente – não sou defensor de terapia de choque, terapia de choque pode ser até contraproducente – num segundo momento gerar uma trajetória de queda gradativa da dívida.
Não é só por causa do grau de investimento. Se vier uma crise e o Brasil precisar fazer política fiscal anticíclica, como foi o caso da covid, países que têm níveis de dívida mais baixos, naturalmente, têm um espaço fiscal maior. Construir esse buffer anticíclico é também uma justificativa para ter uma dívida pública baixa em bons momentos.
Portanto, há uma necessidade de consolidação fiscal. O que é isso, em bom português? A gente precisa sair de um déficit de 1% do PIB e obter um superávit de pelo menos 1% do PIB. São 2 pontos percentuais do PIB.
Havia uma consciência dentro da equipe econômica lá em março do ano passado que a gente precisaria chegar num superávit primário de 1% do PIB pelo menos para conseguir estabilizar a dívida pública e com isso almejar, por exemplo, reconquistar o grau de investimento.
Mas houve aumento de gastos, com a PEC da Transição e o aumento do gasto com o Bolsa Família.
Qual foi o impacto nas contas?
O pior do gasto com o Bolsa Família é que aumentamos uma despesa permanente sem a devida compensação. A Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo atropelada no Brasil.
O artigo 14 da LRF diz que a gente não pode aumentar um gasto permanente ou gerar uma renúncia de receita permanente sem a devida compensação, para não gerar um impacto na sustentabilidade fiscal. A gente tem feito isso com frequência – e o Congresso também, à revelia do Executivo.
No caso recente, foi até justificável ampliar a rede de proteção por causa da covid. Teve um efeito importante de redução da extrema pobreza. Só que precisa de financiamento perene para isso. O gasto com o Bolsa Família era de 0,4% do PIB ao ano e passou a ser 1,5% do PIB.
Precisamos cortar outros gastos ou aumentar a receita. Isso não foi feito pela PEC da Transição. A PEC da Transição aumentou o gasto e falou, ‘Depois eu procuro a receita.’ Aí começou essa agenda de buscar receitas, de consolidação fiscal toda pelo lado da receita.
Essa estratégia deu com os burros n’água, porque o governo até conseguiu aprovar muita coisa, mas aí vem o Congresso e prorroga o Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), a desoneração da folha vai ser prorrogada e ampliada para estados e municípios, e aí vem a PEC do Quinquênio. É enxugar gelo.
A carga de cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal fica estritamente sobre o Executivo, que precisa ficar o tempo todo apagando essas pautas-bombas que vêm do Legislativo e às vezes até do Judiciário.
Como fica a viabilidade do arcabouço fiscal?
O arcabouço colocou um limite – alto, na minha opinião – de crescer as despesas em 2,5% ao ano, para um PIB potencial de 2%.
O problema é que nem todas as despesas crescem no máximo 2,5%. A Previdência cresce acima disso, ainda mais com a política de valorização do salário mínimo.
Os gastos mínimos de saúde e educação voltaram a ser vinculados às receitas. Então, se o governo está aumentando a carga tributária, automaticamente as despesas com saúde e educação crescem. Mas não é bom gastar mais em saúde e educação? É bom, mas precisa de critério.
Na prática, a regra de gastos aprovada no ano passado não limitou todos os gastos. Limitou o gasto global, mas tem várias despesas ali dentro com pesos grandes, com impacto grande na despesa total, sem limite. É o caso da despesa previdenciária.
O próprio Tesouro Nacional apontou que com o arcabouço fiscal as despesas discricionárias, que é onde estão os investimentos, tendem a zero.
Por isso comento no artigo que, à luz da literatura empírica, os ajustes bem-sucedidos são compostos de mais ou menos metade de redução das despesas e metade de aumento da carga tributária.
O Brasil parece que insistiu nos extremos. Primeiro com o teto de gasto anterior, que era só despesa, e agora com essa estratégia mais recente de olhar só para receita. Precisamos reavaliar isso.
A despesa previdenciária já consome quase metade do total da despesa da União e não é totalmente financiada. O déficit do RGPS (Regime Geral de Previdência Social) beira 3% do PIB.
Esse é o ponto que mais repercutiu de seu artigo, quando fala da necessidade de desvincular os benefícios previdenciários e sociais do salário mínimo. Qual a chance de o governo levar adiante essa discussão?
Politicamente, acho impossível nos próximos anos. Primeiro, é um governo mais de esquerda. Segundo, já estamos nos aproximando da próxima eleição. Já passamos o período inicial quando o novo governo tem mais capital político.
Mas muitos analistas dizem que apenas um governo de esquerda, do PT, poderia enfrentar uma agenda como essa.
Acho que um governo de esquerda em começo de mandato. Pesa o cálculo político, seja no governo de esquerda ou direita, quando começa a entrar o ciclo da política eleitoral.
Só um governo de esquerda e em começo de mandato teria um pouco mais de capacidade de aprovar uma ampla reforma da Previdência, envolvendo, inclusive, fazer essas discussões delicadas de vinculação do piso previdenciário a salário mínimo.
O salário mínimo deve sim ser reajustado para refletir a produtividade, não tem que ficar congelado. O mínimo tem uma importância enorme no mercado de trabalho, onde o poder de barganha fica muitas vezes mais do lado dos empregadores do que dos empregados.
Mas salário mínimo é uma variável para regular o mercado de trabalho. Para aqueles que já estão aposentados, são pensionistas, o salário mínimo não deveria ter reajuste real de valor.
Obviamente, esse é um tema altamente impopular, particularmente do ponto de vista do pessoal mais à esquerda. Em meio às repercussões do tuíte do ministro Haddad, já até me chamaram de assassino de velhinhas.