Desde que começou o Grupo Boticário como uma pequena farmácia de manipulação em Curitiba, Miguel Krigsner pacientemente construiu um império que se tornou a inveja da concorrência e um modelo no mundo corporativo.
O Grupo hoje fatura mais de R$ 30 bilhões por ano com 4.000 lojas e diferentes marcas e canais.
47 anos depois daquele começo humilde, Miguel está pronto para contar essa história e abordar temas de sua vida pessoal num livro prestes a ser lançado.
A Essência de Empreender (Portfólio Penguin, 144 páginas) sai em 27 de agosto, mas já está em pré-venda.
O livro terá um quê de ineditismo. O empresário, hoje com 74 anos, deu poucas entrevistas na vida e nunca havia relatado de forma estruturada a história de como criou uma das maiores empresas de cosméticos da América Latina.
Miguel disse que essa construção não teve tanto planejamento quanto se possa pensar.
“Você até pensa em planejar, mas tem tanta coisa numa empresa, que não tem como planejar nada. Você vai andando, e sabe que vai ter risco no que você faz. Tem que encarar os riscos. E a cada derrota, que são muitas, você se levanta, aprende e segue em frente,” disse o empresário.
Miguel disse que decidiu esperar para lançar o livro durante a convenção dos franqueados do Boticário, “porque eles são os parceiros de uma vida para mim. Essa história é de todos nós.”
Abaixo, os principais trechos de sua conversa com o Brazil Journal.
Como você amadureceu a ideia de fazer um livro, já que você é uma pessoa notória pela sua discrição? Como foi esse processo para você?
Alguns anos atrás eu fiz um certo ensaio de querer fazer um livro. Mas eu achei que não estava pronto, e nunca vou estar. Mas chega um momento na vida que você tem que decidir. Quando você tem 74 anos é aquela história: “o que você construiu?”
Então escrever um livro é uma maneira de trazer a minha versão dessa trajetória do Boticário, onde eu misturo as questões da empresa com a minha vida pessoal, que é uma espécie de pano de fundo.
Já se escreveu muito sobre o Boticário nesses 47 anos, mas eu queria dar um tom realmente descomplicado – sem me preocupar tanto com o lado empresarial, mas sim de como fui construindo tudo isso, contando com a ajuda de milhares de pessoas.
Porque a gente sabe muito bem que ninguém faz nada sozinho. Eu tive a sorte de encontrar muitas pessoas que foram se juntando a esse sonho.
O livro começa com coisas bastante simples. Quando começamos o sistema de franquias, ele não existia no Brasil. Não existia nenhum contrato que você pudesse fazer, nem normas e nem procedimentos que você tinha que ter. A gente teve que criar do zero. E conseguimos alavancar o negócio através de capital de terceiros, fazendo com que a velocidade de expansão do Boticário fosse mais rápida.
Quando você tem franqueados, e esses franqueados muitas vezes acabam colocando a reserva da vida deles no negócio de franquia, a nossa responsabilidade aumenta muito. São pessoas que vão se juntando a esse sonho e vão confiando em você. A relação das franquias é de confiança, é de ganha-ganha. As franquias que querem favorecer só um dos lados morrem na praia.
Tem que ser uma relação muito equilibrada para você conseguir crescer através da confiança e do envolvimento das famílias. É muito legal ter a vida de tantas pessoas junto com a sua.
Quando alguém dá muito certo na vida, as pessoas tendem a achar que aquilo tudo foi pré-planejado, que a pessoa já nasceu um gênio. Mas quando você conversa com fundadores, nunca é assim. Você tem um acerto inicial. Aí no passo seguinte você dá sorte. Depois, outro acerto. Depois mais sorte. Quando você olha para trás, o que foi planejado? E o que foi a inércia do sucesso?
É interessante essa sua pergunta pelo seguinte. Se eu for falar em planejamento, eu não tinha nem tempo para poder planejar, porque a coisa tomou uma velocidade…
Eu lembro que nossa primeira instalação de fábrica foi uma porção de coisinhas que fomos agregando aqui e ali. Fazendo mais um barracão. O primeiro layout nosso de fábrica era uma confusão, porque à medida que entrava um dinheiro a gente fazia mais um puxadinho aqui e ali.
Talvez tenha um pouco de espiritualidade no meio, porque eu acredito muito que as coisas não dão certo por acaso. Mas hoje eu consigo entender que foi como um quebra-cabeça, que as coisas vão se encontrando, se encaixando igual um mosaico.
Mas aí eu vejo que além disso tem uma energia superior que vai guiando os seus passos. Porque no fim do dia somos uma energia que vai captando e fazendo com que as coisas aconteçam. Mas eu acho que tem uma energia fundamental aí, que é querer fazer relações equilibradas, relações que construam, e que sejam do bem comum e possam ser compartilhadas com os outros. Eu acredito muito nisso.
Eu sempre brinco que estamos aqui porque fomos jogados no planeta. Mas muitas vezes você é jogado no planeta e não sabe exatamente de onde você veio, qual o seu trabalho, qual a razão da sua existência. E na hora que vejo a nossa empresa hoje, e como ela foi algo transformador na vida das pessoas, isso dá sentido para a minha vida.
Eu acredito que uma empresa tem que ter seu interesse financeiro, isso faz parte, mas o que vale mesmo é a capacidade de transformação que ela tem na vida dos outros. Pode parecer piegas isso. Meio romântico. Mas não é.
Na hora que eu começo a ouvir os vários depoimentos das pessoas que fizeram e fazem parte da empresa e a mudança que aconteceu na vida delas, eu digo: que legal que estamos fazendo isso.
A que você atribui o seu sucesso e o do Boticário?
Eu atribuo à capacidade de atração que tivemos, através de uma postura sempre limpa e transparente, com as diversas pessoas que fazem parte do nosso sistema hoje. Estou falando de fornecedores, franqueados, colaboradores.
Isso, inclusive, eu acho que consegui transmitir através do livro. A Ariane Abdallah, que me ajudou muito a escrever o livro, fez quase 40 conversas com pessoas que foram montando essa história comigo. Eu queria que ela fizesse isso, porque os depoimentos que ela pegou foram enriquecendo o livro.
Para quem você fez o livro?
Eu acredito que tem muitos ensinamentos ali. A gente vive hoje num País de grandes empreendedores. Isso é um País que cresceu graças às pessoas que vão empreendendo e que têm coragem de muitas vezes arriscar o mais importante da vida delas.
Se você analisar bem, o grande sonho das pessoas nos EUA é em qual companhia elas vão trabalhar. Elas fazem uma carreira de ascensão dentro de uma organização.
Já o Brasil é um País de empreendedores, em que a pessoa se arrisca para tentar dar certo. Os pequenos negócios fazem hoje a grande massa de mão-de-obra do País. É para essas pessoas que eu dirijo o livro.
Eu também penso em deixar um certo legado, mesmo antes de morrer – porque não pretendo morrer nos próximos 50 anos, porque ainda tenho muita coisa pra fazer.
Mas volta e meia me perguntam: qual legado você quer deixar? Quero que esse legado seja o dia a dia que continuamos fazendo. Legado serve para ficar na tumba, quando escrevem uma frase bonita. Não quero nem discurso no meu enterro. Quero que a gente consiga transmitir tudo que a gente construiu.
Teve uma época que vocês tinham um concorrente muito maior que vocês e vocês eram uma empresa monocanal, só franquias. E aí você foi explorando os outros canais e hoje está servindo o cliente em todas as ocasiões e lugares possíveis. Como foi essa evolução do modelo de negócios de vocês? Qual reflexão você faz disso?
Durante muitos anos, até 12 anos atrás, a gente ficou muito focado num único canal mesmo. Então qualquer análise de mercado que a gente vinha fazendo, parecia que existia um funil, quando a gente colocava isso em funil, e dentro da proposta de valor da marca Boticário, tinha muita coisa que a gente via que não passava mais. Aí você vai estudando o que está acontecendo com o mercado brasileiro, com o consumidor, o que ele espera. E aí fomos detectando as oportunidades de mercado que existiam que íamos poder ir agregando, uma vez que já tínhamos uma estrutura fabril importante e um marketing poderoso.
Foi assim que decidimos atacar outros canais, com outras propostas de valor, com outras marcas, mas garantindo que o Grupo mantivesse as essenciais do que acreditamos. Aí criamos a marca Eudora e canais como o B2B e a venda direta, que surgiu de uma demanda dos próprios franqueados, que queriam expandir seus negócios. Fizemos nossa venda direta passando por dentro dos franqueados, porque existe uma lealdade muito grande com nossos franqueados, e jamais íamos furar esse compromisso.
Durante muitos e muitos anos, o nosso concorrente muitas vezes me inspirou. Inspirava e me fazia pensar: ‘Como a gente pode fazer uma coisa diferente, melhor.’ A Natura é uma empresa muito interessante, que está tentando retomar os passos. É uma empresa que a gente tem que admirar. Ela é 7, 8 anos mais velha que o Boticário.
Uma coisa boa é você ter um concorrente que você quer superar. Quando você não tem um bom concorrente, há uma tendência de você achar que está tudo lindo, maravilhoso, e você ficar deitado em cima dos louros. Aí que mora o perigo. Uma companhia tem que estar constantemente se inovando, procurando crescimento.
Como seu mercado é muito discricionário, se você resolvesse se juntar ao concorrente, fazer uma fusão, talvez não houvesse um obstáculo de antitruste, porque esse mercado é um mar aberto. Alguma vez vocês pensaram em se juntar? Já houve alguma conversa entre você e os fundadores da Natura?
Eu tenho uma relação muito boa com os três, principalmente com o [Pedro] Passos, que é uma pessoa fácil de conversar. Muitas vezes se começa a ter conversas, mas são conversas de ‘vamos tomar um vinho, e conversar.’
Mas eu acho muito difícil porque são culturas muito diferentes. Você junta duas empresas, mas em última instância é a cultura que vale. Porque você pode ir fazendo os arranjos, de que produtos vai deixar, quais vai tirar fora, são acomodações que você pode fazer numa sinergia de empresas. Mas o que é muito difícil e eu respeito muito é a cultura da organização, e das pessoas que fazem parte.
Então, é um desafio muito grande você juntar duas coisas que são até incompatíveis no aspecto de cultura, e no fundo acabar com as duas empresas. Então, precisa ter um cuidado muito grande. Mas [a Natura] é uma empresa que a gente admira.
No livro tem algum bastidor de momentos em que vocês sentaram e conversaram sobre a possibilidade?
Não, não. Não tem.
Mas já aconteceu?
O que aconteceu foram conversas informais, em que estávamos conversando sobre os filhos, a vida… O Artur [Grynbaum] tem uma relação muito boa com o Passos, até de encontros que eles mantêm nas várias entidades de que fazem parte, e seguramente isso passa nas conversas. Mas nunca foi algo formal e estruturado.
Agora, o que eu narro no meu livro é um namoro muito grande que tivemos com uma empresa francesa, a Yves Rocher. Ali, tivemos uma aproximação porque eles queriam entrar no Brasil. Fizeram duas tentativas anteriores. E nós fomos construindo uma possível parceria com eles, que passamos até a fabricar os produtos. Mas o contato sempre foi através de executivos, e depois de um mês o cara não tava mais: tinha sido substituído. Tinha também a dificuldade da língua.
Chegamos até a construir um acordo de intenções. Mas aí, numa conversa com o Artur – que é meu cunhado, meu sócio, meu amigo, uma pessoa que eu encontrei na minha vida e que é muito boa – numa bela tarde eu sentei com ele e falei: “esse negócio não tá colando.”
Porque era um negócio de viaja pra cá, executivos que vinham de Paris… Eu falei: “isso aqui não está com a minha cara.”
Aí o Artur falou: ‘vamos amanhã para Paris.’ Fomos para lá para dizer que estava tudo terminado. Cheguei na reunião, tinha um corpo de executivos, e eu sentei na frente dos franceses e falei: ‘Olha, vim aqui pessoalmente para falar que não vamos fazer o negócio.’ ‘Mas por que?’ eles perguntaram. ‘Porque tem uma diferença de cultura muito grande.’
O CEO da companhia ficou P da vida, levantou da mesa, falou uma palavra feia, e eu só peguei minha maletinha, o Artur pegou a dele, e fomos embora. E falei: ‘Vamos pegar um restaurante bem legal, tomar um vinho, e hoje à noite a gente embarca de volta para o Brasil.’
Você não imagina o alívio que me deu na hora que eu rompi esse negócio. Porque a cultura é muito importante. Dizem que a cultura come a estratégia no café da manhã.
Você é uma pessoa muito espiritual. Você sempre foi assim ou foi evoluindo nessa direção ao longo da construção da empresa?
Eu sempre fui muito espiritual porque eu perdi minha mãe muito cedo, com 11 anos. Meu pai era um comerciante, e ele me criou muito dentro de loja, de uma loja de confecções. Comecei a trabalhar com 13 anos com meu pai. Mas eu sempre fui muito espiritualizado porque no fundo eu queria criar alguma coisa que fizesse diferença para o mundo. Eu não sabia exatamente o quê.
Eu sempre falo que quando você é jogado no planeta, ou você é um alface, ou você tem um trabalho de construir alguma coisa. E o Boticário foi uma oportunidade: desde a época da farmácia eu percebi que ali tinha uma possibilidade de crescimento, sem saber o tamanho. E de colocar ali as coisas em que eu acredito.
E tem coisas que se somam. A minha família é judia, tanto a da minha mãe quanto a do meu pai. E a questão do Holocausto pesou muito. A família do meu pai perdeu 24 pessoas assassinadas na Polônia, na câmara de gás. Esse tipo de coisa me pegou muito do ponto de vista existencial. E eu acho que hoje em dia você tem que tentar construir um mundo melhor do que o daquela época.
Você construiu o primeiro museu do Holocausto no Brasil…
Sim. Agora já tem alguns outros trabalhos dessa natureza, mas na época foi o primeiro. E no fundo o que eu queria era mostrar o que o ódio pode fazer. O ódio de qualquer forma.
Criamos um museu extremamente didático, mostrando os vídeos do que aconteceu, porque recebemos semanalmente dezenas de crianças de escolas públicas.
A questão do Holocausto me traz lembranças todos os dias. Eu tenho memórias do meu pai acordando todas as noites suando, pensando que vinham alemães atrás dele. São coisas que vão te moldando, que vão moldando sua personalidade.
E como você acha que o Boticário fez a diferença no mundo?
Quando eu vejo o papel do Boticário dentro da sociedade, e todas as pessoas que são tocadas por ele — desde o pessoal interno, fornecedores, todos os stakeholders, que acaba no nosso consumidor — o impacto é muito grande.
Eu fico muito feliz com aquilo que conseguimos e temos conseguido construir. Essa satisfação é muito melhor do que qualquer grana que você vai receber. Claro que o dinheiro é importante. Sem o dinheiro, você não consegue coisa nenhuma. Mas saber que você está democratizando, ou distribuindo aquilo que você recebe para os outros, é muito enriquecedor.
Qual é a sua escola de filantropia: fazer e não falar, ou fazer e falar, porque ao falar você gera o estímulo para outros fazerem?
Eu te diria que os dois. Hoje em dia fazemos filantropia sem fazer nenhum comunicado. Tem uma palavra em hebraico que é Tsedaká [justiça social]. Essa palavra é muito importante para os judeus, é uma coisa que você está fazendo pelo outro. Eu acredito muito nisso.
E tem outra frase que acho muito legal que é: “quem salva uma vida salva a humanidade.” É muito forte isso. E aí você começa a ver o propósito que você tem nesse mundo.
Você tinha me perguntado antes se eu tinha um plano quando comecei tudo isso. Vou te dar outro provérbio, mas em espanhol. Caminante, no hay camino. Se hace camino, al andar. E é realmente isso, porque às vezes você pensa em planejar, mas tem tanta coisa numa empresa, que não tem como planejar. Você vai andando, sabe que vai ter risco no que você faz. Tem que encarar os riscos. E a cada derrota, que são muitas, você se levanta, aprende e segue em frente.
Qual sua visão sobre a política internacional do Governo brasileiro na questão de Israel?
Eu acho que é muito triste isso, porque não se conta a história como ela é. É um negócio tão distorcido da realidade. Infelizmente tem gente morrendo dos dois lados lá, igualmente. É um sofrimento enorme. E vemos ali um pano de fundo que poderia ser consertado muito rapidamente se não existisse o interesse das grandes potências por trás daquilo.
Você tem o Irã contaminando aquilo. Você tem os EUA também querendo garantir a principal democracia do Oriente Médio. Então ali é um tema muito fácil de fazer confusão e as pessoas sem causa pegam aquilo como uma causa.
Hoje em dia, infelizmente, a juventude tem uma falta de causa. Pegam causas que não tem nada a ver com o Brasil. E tem tantas causas maravilhosas que essa juventude poderia fazer pelo País. Tem as causas ambientais. Tem milhões de pessoas negras e pardas sem um caminho pela frente. Deveríamos trabalhar essas causas para tirar milhões de brasileiros da miséria.
Tem causas muito mais importantes do que você pegar lá uma causa com uma etiqueta linda, escrita em alguma palavra que não tem nada a ver conosco.