Há longínquas cinco décadas, Brasil e Paraguai assinaram um tratado para impulsionar a implantação de uma grande usina hidrelétrica, a maior do mundo até então, na fronteira dos dois países.
O Brasil assumiu a total responsabilidade financeira de levantar os capitais necessários, oferecendo para isso as devidas garantias e montando uma equação que obrigava as distribuidoras brasileiras a comprar a energia de Itaipu com precedência à de suas próprias usinas geradoras.
O sacrifício foi imenso: a Cesp, por exemplo, teve que deixar de usar a água de seus reservatórios para a comprar a energia — muito mais cara — de Itaipu.
A Eletrobras, além de deter metade do capital social, foi quem captou o financiamento em dólares e o repassou em reais — pagos, cerca de 97% do total, pelos consumidores brasileiros de energia elétrica.
Uma enorme rede de transmissão foi construída para escoar esta energia, e a Eletrobras implantou um centro de pesquisas, o CEPEL, para desenvolver equipamentos e testes para transmissão de energia nas ultra altas voltagens demandadas. (Uma complicação adicional era que metade da energia tinha que ser transportada em 600.000 volts de tensão em corrente contínua, e a outra metade, em 750.000 volts em corrente alternada.)
O projeto, apesar do acréscimo nos custos inicialmente previstos, foi um sucesso retumbante.
Agora, quase 50 anos depois, um novo marco se aproxima: em 2023, Itaipu Binacional terminará de pagar o financiamento que lhe foi concedido pela Eletrobras.
Este evento trará repercussões amplas para todo o sistema elétrico brasileiro, mas sequer está sendo debatido. O fim do pagamento da dívida significa que a energia de Itaipu deixará de ser dolarizada, e portanto livre da volatilidade cambial. A rediscussão do chamado Anexo C, como veremos mais adiante, também pode significar o fim da obrigatoriedade das distribuidoras de comprar a energia de Itaipu, que poderá, por exemplo, ser negociada no mercado livre.
O fim do pagamento da dívida transformará Itaipu em uma gigantesca “cash cow”: o investimento estará amortizado, a receita continuará elevada, e os custos de operação e manutenção deveriam ser muito baixos. Neste momento, o plano original previa que a sobra de caixa de Itaipu será usada para reduzir tarifas no setor elétrico brasileiro.
Porém, as coisas não estão caminhando desta forma.
Houve desvios em relação ao plano original, e brasileiros e paraguaios terão que pressionar para repor a coisa nos eixos.
Os instrumentos criados na época do tratado — e que atendiam ao justo e correto do ponto de vista contratual — foram alterados por governos populistas e fisiológicos dos últimos anos.
Pouca gente sabe, mas houve um aumento exagerado das despesas de operação e manutenção de Itaipu, às quais se somaram diversas despesas estranhas na chamada “área de influência do reservatório.”
Em vez do que acontecia historicamente — uma gestão prudente e eficiente, que mantinha os custos de manutenção e operação em cerca de US$ 200 milhões/ano — Itaipu já há alguns anos tem uma operação inflada por investimentos alheios ao negócio, e tudo com a concordância de seus diretores-gerais.
A despesa hoje monta a mais de US$ 700 milhões anuais, não só excedendo em cerca de US$ 500 milhões o que seria razoável como onerando a tarifa para todos os brasileiros, no momento em que deveria ocorrer justamente o contrário.
Outras coisas estranhas ao objeto original do tratado agravarão o problema se nada for feito para coibi-las. Por exemplo: contando com os recursos de Itaipu, o Brasil acaba de anunciar um plano de obras — todas no Estado do Paraná — que inclui a construção de mercadinhos municipais, estradas, pontes e aduanas.
Estes projetos nada têm a ver com os consumidores de energia elétrica de todo o Brasil que incorreram todo o custo e risco durante os últimos 50 anos, e que por sinal já pagam as consequências desses despropósitos administrativos.
Só para dar um exemplo, agora em março os consumidores da Light constataram que a energia que são obrigados a comprar de Itaipu teve um aumento de 24,5%.
No final, consumidores brasileiros pagam por obras controversas no Brasil e outras de igual valor no Paraguai, em função do princípio de paridade que rege o Tratado.
Esse gasto adicional em manutenção, se reduzido, somado ao fim do pagamento dos financiamentos, criará para cada país um excedente de quase US$ 2 bilhões que, se direcionado como se previa originalmente, poderia sensivelmente abaixar as tarifas na Brasil, ou ser usado em obras de modernização e confiabilidade do setor elétrico.
No momento de escassos recursos para ciência e tecnologia no Brasil, seria vital amparar a pesquisa. Como seria também proteger as fontes de água que alimentam a formidável Bacia do Paraná ou estudar a questão de aproveitamentos na Amazônia para que não se repitam os lamentáveis exemplos recentes de degradação ambiental.
Mas não. Vamos construir mercadinhos…
Além de algo estranho ao pacto federativo — coletar dinheiro no Sudeste, Sul e Centro-Oeste e aplicá-lo apenas no Paraná — é um drible nos mecanismos de fiscalização. O TCU do Brasil e o correspondente do Paraguai não entram em Itaipu, ou seja, não entram no mérito dos tais custos de manutenção inflados.
Uma despercebida alteração do objetivo empresarial de Itaipu Binacional no tempo dos governos populistas, combinada a uma liberal interpretação da expressão “obras do interesse do desenvolvimento regional”, dão cobertura a práticas lesivas aos nossos interesses e ao espírito do projeto.
A proximidade do prazo limite do Anexo C, a parte do tratado que disciplina estas questões financeiras, impõe que o Brasil reúna seus melhores quadros técnicos — tanto na engenharia quanto nas relações internacionais — para definir a posição brasileira na próxima negociação que, convém registrar, sempre foi tratada com a máxima seriedade pelo lado paraguaio.
É necessário impor tetos aos custos de manutenção, uma estratégia e metas para reduzi-los aos níveis desejáveis, e definir muito claramente o que são as “obras de interesse regional” passíveis de receber recursos diretos de Itaipu.
Mas para isso é preciso competência e vontade política.
José Luiz Alquéres é ex-presidente da Eletrobras e da Light, e conselheiro do Clube de Engenharia.
Altino Ventura Filho é ex-presidente da Eletrobras, ex-Diretor Geral de Itaipu Binacional e ex-Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME.