O Presidente Lula resolveu mexer em time que está ganhando – uma prática desaconselhada no futebol e na economia.

Um trecho de uma medida provisória editada hoje pelo Governo parece alterar atribuições da Agência Nacional de Água e Saneamento Básico (ANA) – trazendo incerteza para um setor que estava começando a voar com o investimento privado depois de décadas sob comando do Estado. 

A mudança – embutida na MP 1154, que reorganizou a Presidência e os ministérios – alterou o artigo 3 da Lei que criou a ANA, retirando a menção a ‘saneamento’ do nome da agência e transferindo-a do Ministério de Desenvolvimento Regional para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança de Clima. 

A MP também removeu do artigo 3 o trecho que dizia que cabe à ANA instituir “normas de referência” para a regulação do setor – um trecho que havia sido incluído na lei em 2020 pelo Marco Legal do Saneamento.

Parte do mercado interpretou a mudança como um retrocesso, já que ela tiraria atribuições da ANA, que hoje é responsável por instituir as normas de referência do setor. 

Num relatório enviado a clientes, o Itaú BBA disse que, com a MP, a ANA não seria mais responsável por criar as normas do setor, o que é um “ponto de preocupação e um retrocesso para o setor.”

“Uma ANA enfraquecida teria poucas ferramentas para garantir que as empresas e municípios operem de forma mais eficiente e invistam o necessário para garantir a universalização até 2033,” escreveu o time liderado por Marcelo Sá. “Nosso medo é que estatais ineficientes possam continuar operando essas concessões por mais tempo.”

O CEO de uma empresa privada de saneamento foi na mesma direção. 

“É no mínimo um retrocesso,” disse ele, acrescentando que a ANA tinha o papel de padronizar os contratos e trazer segurança jurídica. “Foi isso que ajudou a atrair capital para os últimos leilões.”

Outra dúvida, segundo o executivo, é sobre a prioridade da agência agora sob o comando do Ministério do Meio Ambiente. “Fazia sentido ela estar dentro do Ministério do Desenvolvimento Regional. A ANA era um componente importante do MDR,” disse.

Outra parte do mercado, no entanto, acha que, na prática, nada deve mudar com a MP.

Wladimir Antônio Ribeiro, o sócio da Manesco Advogados especializado em saneamento, disse ao Brazil Journal que mesmo com a MP a ANA continua responsável pelas normas de referência do setor.

“Teve muita fumaça, mas pouca mudança efetiva,” disse ele, que trabalha tanto para empresas privadas e públicas do setor quanto para órgãos do governo.

“A MP mudou o artigo 3 da lei da ANA que falava que cabia a ela instituir as normas de referência do setor, mas os artigos 4a e 4b, que detalham como essa competência acontece, continuam lá,” disse ele. “Os artigos 22, 23 e 50 da lei do saneamento, que mencionam a ANA como responsável por criar as normas de referência, também continuam lá.”

Segundo ele, pode ter acontecido que, na hora de copiar o trecho do artigo 3 para incluir na MP, o Governo copiou a versão antiga, pré-Marco do Saneamento.

“Olhando essa mudança do artigo 3 em relação a todo o conjunto da lei, você percebe facilmente que não tem mudança alguma,” disse Wladimir. “Nunca se deve interpretar o direito em tiras.”

A confusão da MP foi turbinada por outro decreto que o governo publicou ontem: o do Ministério das Cidades. O decreto diz que a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, vinculada à pasta, seria responsável por instituir as normas do setor de saneamento.

Para Wladimir, houve um erro na redação do decreto, já que em alguns trechos ele usa a palavra “instituir”, mas em outros usa a palavra “sugerir.”

“Isso é uma contradição que não poderia estar lá. Provavelmente foi um erro de redação do decreto,” disse ele. “De qualquer forma, o decreto não pode contrariar a lei, que diz que é a ANA que tem essa competência.”

Mudando ou não as atribuições da ANA, o voluntarismo do governo já causou uma confusão no setor.

E para um governo que fala tanto em “discutir com a sociedade,” a mudança foi feita sem discussão nenhuma.