A morosidade da Justiça nunca cessa de surpreender.
Quando achávamos que as ações contra a privatização da Vale, que demoraram 27 anos para ser resolvidas, eram a notícia mais espetacularmente bizarra sobre o assunto, descobrimos que ela foi superada por outra no ranking das ações mais longevas do País — ironicamente uma que envolve a estatização que deu origem à Vale do Rio Doce.
Esta ação foi movida no início dos anos 1960 — e até agora não teve um desfecho, apesar de já ter transitado em julgado no STF.
Para entender o processo, é preciso dar um passo (bem largo) para trás.
Quando o Presidente Getúlio Vargas encampou a Companhia Brasileira de Mineração e Siderurgia para criar a Companhia Vale do Rio Doce, em 1942, a companhia estatizada tinha 27 acionistas. O maior deles era o investidor americano Percival Farquhar, que, dentre outros negócios no Brasil, foi o fundador da então Rio de Janeiro Light & Power, hoje conhecida apenas como Light.
No decreto de encampação foi definido que os acionistas da CBMS receberiam uma quantia em dinheiro igual ao capital integralizado por eles na companhia.
Além disso, o decreto previa uma indenização suplementar, dizendo que o Tesouro Nacional ficava autorizado a transferir aos acionistas até 7 mil ações da nova companhia (a Vale) “para liquidar o ajuste que se fizer necessário de indenizações devidas.”
Como o decreto não deixava claro se a entrega dessas ações era uma obrigação da União ou algo facultativo, a União protelou esse pagamento por anos.
Até que… em 1964, no Governo Castello Branco, os acionistas da CBMS foram convocados para receber as tais 7 mil ações da Vale.
“Na época, os acionistas se recusaram a receber as ações porque, desde o decreto de 1942, haviam ocorrido muitos aumentos de capital na Vale, diluindo a participação deles,” disse Carlos Alexandre Pessoa, um sócio do BCW Advogados, que representa cinco herdeiros dos acionistas originais.
Em 1967, os acionistas decidiram processar a União, pedindo o pagamento das 7 mil ações com todos os acréscimos devidos: dividendos, bonificações e juros de mora incidentes.
“A ação foi julgada procedente na segunda instância e, em 1984, transitou em julgado no STF, tornando a decisão imutável,” disse Pessoa.
O problema é que – o Brasil sendo o Brasil – uma burocracia enorme atrasou a execução da sentença, que levou anos até descer do STF e voltar para a primeira instância para ser executada.
“Nesse meio tempo, vários dos autores do processo foram morrendo, os três advogados que entraram com a ação também morreram – o último deles em 2000 – e o processo acabou arquivado por falta de movimentação,” disse Pessoa.
A ação só foi desarquivada 15 anos atrás, quando herdeiros dos acionistas originais retomaram o processo. Pessoa representa cinco dessas famílias, incluindo a do segundo maior acionista da CBMS, o empresário Mário Tibiriçá.
Além do BCW, outros escritórios envolvidos no processo são o BMA Advogados, que defende duas famílias, o Bermudes Advogados, que defende uma família, e o Rosman Advogados, que também defende uma família.
Pessoa tem uma relação pessoal com o processo. Curiosamente, seu avô, Álvaro Leite Guimarães, foi um dos três advogados que entraram com o processo original. Pessoa chegou a trabalhar nesse processo em 1989, como estagiário do escritório de seu avô, mas acabou se afastando da causa. Foi para o Machado Meyer em 1998 e ficou lá até 2008, quando abriu seu escritório.
Em 2009, foi procurado pela família Tibiriçá para representá-la por indicação de um conhecido.
Como o processo havia parado na fase de liquidação da sentença, a expectativa é que, no desarquivamento da ação, tudo corresse rápido — mas, mais uma vez, a Justiça brasileira teve a agilidade de uma múmia egípcia.
Assim que foi retomado, o processo foi interrompido porque a União entrou com um recurso questionando se os herdeiros poderiam substituir os autores originais ou se tinham que ser substituídos por seus espólios.
“Houve este novo debate que atrasou o processo,” disse Pessoa. “Eu optei por substituir os autores pelos espólios, o que gerou um trabalho maior, já que tivemos que desarquivar inventários muitos antigos, mas eu achei que era o único caminho viável. Outros advogados, no entanto, optaram pelo caminho mais fácil, de substituir os autores pelos herdeiros.”
No final, a Justiça decidiu que os autores teriam que ser mesmo substituídos pelos espólios — e isso paralisou o processo por mais 10 anos.
Agora, o processo está na fase de liquidação da sentença. A última atualização foi uma intimação da Justiça em agosto pedindo à Vale para fornecer todas as atas de suas assembleias, desde 1942, de forma ordenada — o que permitiria calcular o valor a ser pago, considerando os dividendos e bonificações.
A Vale tem 120 dias (até o dia 19 de fevereiro) para apresentar as atas. Depois disso, os autores da ação terão mais 60 dias para apresentar seus cálculos. Na sequência, a União poderá se manifestar sobre esses cálculos, e muito provavelmente haverá divergências nos valores, o que fará o juiz ordenar uma perícia independente.
Pessoa disse que hoje ainda é difícil estimar o valor da indenização, já que há muitas lacunas de informações no processo.
“Mas temos assistentes técnicos trabalhando nisso há muito tempo e a estimativa deles é de R$ 2,8 bilhões para todos os autores,” disse ele. “Tem alguns autores que imaginam um valor muito maior, e outros que defendem que deveria ser uma participação no capital da Vale…”
Para Pessoa, não há mais risco de não haver a execução da sentença. “O único risco é isso ir se prolongando e pular mais uma geração.”
Talvez o único consolo para os autores seja o fato de que esta ação – hoje com 57 anos – não é o recorde de lentidão da Justiça brasileira.
Segundo o site Migalhas, o processo que tramitou por mais tempo na Justiça foi o movido pela Princesa Isabel contra a União, pedindo uma indenização por tropas militares terem tomado o Palácio Guanabara, no Rio, durante a Revolta da Armada.
Movido em 1895, este processo durou 124 anos.