O filme começa nas pistas de corrida. Uma breve sequência, no preto e branco granuloso de um filme antigo, mostra Enzo Ferrari (1898-1988) como piloto da Alfa Romeo, nos anos 1920. A história então salta para 1957, e Enzo, agora o fabricante de um dos carros esportivos mais cobiçados do mundo, aparece imerso em uma plácida atmosfera doméstica. 

Em uma discreta casa nos arredores de Módena, sua cidade natal, ele acorda cedo, tendo o cuidado de não despertar a mulher com quem divide a cama. Veste-se em silêncio e visita o quarto de Piero, seu filho, ajeitando as cobertas do menino. Nessa postura paternal, a camisa branca ainda com os punhos desabotoados, ele tem o ar calmo e portentoso de um capitão de indústria – de qualquer indústria: poderia fabricar eletrodomésticos ou móveis de escritório no lugar de carros de luxo. 

É na estrada, a caminho da cidade, que Enzo afinal se encontra em seu elemento. Ele dirige um carro de passeio (não é uma Ferrari), mas tira o máximo que aquela máquina ordinária pode dar. Uma câmera atenta acompanha os pés que rapidamente alternam embreagem e acelerador. 

Enzo nunca pisa no freio.

A tranquilidade das cenas iniciais revela-se enganosa: o herói de Ferrari, em cartaz nos cinemas, foi feito para a indústria automobilística – e para nenhuma outra. Obcecado pela velocidade, ele nasceu para dar nome a um carro icônico.

Encarnado com muita convicção por Adam Driver, Enzo Ferrari é uma combinação de turbulência incontrolável e eficiência fria. Mesmo nas circunstâncias que o obrigam a ficar parado – como a missa pelo Dia do Trabalhador – sua mente ainda está com o pé no acelerador, aguardando a bandeira de largada.

O filme concentra-se em um único ano – crucial – na vida do protagonista e da empresa que leva seu nome. Em 1957, a Ferrari estava em crise. 

A empresa já conquistara clientes ricos e poderosos – como o rei Hussein, da Jordânia, que aparece em Módena para buscar sua Ferrari amarela. Mas as contas não fechavam. Um assessor financeiro de Enzo recomenda que ele busque um investidor para evitar a falência.

Há um complicador: o casamento de Enzo também está em crise e, para fechar qualquer negócio, ele precisa do aval de Laura, sua mulher, detentora de metade das ações da empresa.

Briguenta e gritona, Laura poderia ser só o estereótipo da mãe italiana histriônica. Mas na interpretação magnífica de Penélope Cruz, ela é um personagem que se mantém heroicamente altiva apesar do sofrimento que a dilacera: a morte recente do filho único do casal Alfredo, aos 24 anos.

Não é Laura a mulher que Enzo deixa na cama no início do filme: aquela é sua amante de muitos anos, Lina Lardi (Shailene Woodley). Os dois têm um filho juntos, Piero – e Enzo teme que a existência dessa segunda família chegue ao conhecimento da esposa.

Entre os dramas na família e as dificuldades nos negócios, o empresário encontra conforto no ronco dos carros. Desdenhando derrotas que sofrera para a Jaguar nas pistas, Enzo faz uma distinção entre a empresa inglesa e a Ferrari: “Eles correm para vender carros. Eu vendo carros para correr”.

O fato, porém, é que também para a Ferrari a vitória em competições automobilísticas representava uma publicidade indispensável. 

As corridas eram então mais violentas e primitivas. Leves demais para a potência dos motores, os carros voavam quando colidiam com algum obstáculo, projetando seus pilotos para longe – cintos de segurança não eram costumeiros. 

Alfonso de Portago (Gabriel Leone, o ator brasileiro que fará Ayrton Senna em uma minissérie da Netflix) sabe desses perigos – e sente-se atraído por eles. Contratado pela Ferrari, o jovem aristocrata espanhol prova que é um piloto habilidoso. Mas habilidade não basta para Enzo, implacável nas exigências que faz a seus pilotos.

O clímax de Ferrari é a Mille Miglia (Mil Milhas), uma corrida de rua em que os pilotos faziam o percurso de Brescia até Roma, ida e volta. O diretor Michael Mann esbanja habilidade técnica ao filmar os carros atravessando cidades – onde passam em alta velocidade a poucos metros do público – e percorrendo largas extensões de estrada à noite, sob chuva. 

Esnobado pelo Oscar – nenhuma indicação –, Ferrari vai indo mal nas bilheterias. Desde a estreia nos Estados Unidos, em dezembro (no Brasil, foi em fevereiro), o filme alcançou uma bilheteria mundial de US$ 41,4 milhões até o final do mês passado – e a produção custou US$ 95 milhões.

É uma injustiça. Talvez o público julgue que a história tem interesse só para os aficionados do automobilismo. Não é o caso. Em Ferrari, as máquinas são uma extensão da glória e da tragédia humanas.