João Gilberto (1931-2019) entrou para o anedotário popular por conta do cancelamento abrupto de suas performances e do eterno queixume contra o sistema de som das casas e teatros nos quais se apresentava.
“Vaia de bêbado não vale,” João disparou em setembro de 1999 contra um grupo de espectadores do então Credicard Hall (hoje Vibra São Paulo). O grupo vaiou depois de João reclamar – com razão, diga-se – do eco insistente que atrapalhava sua apresentação ao lado de Caetano Veloso.
Mas o público que foi assisti-lo no Sesc Vila Mariana – um ano e meio antes, em 5 de fevereiro de 1998 – se deliciou com um João a plenos poderes, desfilando seu rico repertório sem maiores acidentes. (Tudo bem, ele falou sobre as cordas de seu violão estarem duras, mas faz parte.)
Naquela noite, o pai da batida da bossa nova estendeu sua apresentação por quase uma hora e meia para uma plateia formada pelos cantores Marisa Monte e Renato Braz e pelo intelectual José Miguel Wisnik, entre outros.
Ao final da apresentação, um único pensamento dominou a alma daquelas pessoas: “que pena que esse show não foi gravado!”
Acontece que o show foi gravado sim – e agora está disponível na plataforma de streaming da associação e será comercializado em formato de CD duplo. Há planos também de transformá-lo num álbum triplo.
João Gilberto: Ao Vivo no Sesc 1998 faz parte de Relicário, uma série criada pela entidade para resgatar e disponibilizar áudios de apresentações lendárias realizadas nas décadas de 70, 80 e 90. Juliana Sonoe, responsável pelo selo Sesc, avisa que outros momentos históricos estão em andamento.
“Estamos estudando uma apresentação da Zélia Duncan e dois momentos de Dona Ivone Lara,” antecipa.
Mas voltemos a João. Segundo Juliana, o próprio músico aprovou o resultado final antes de morrer, em julho de 2019. Seu falecimento, contudo, deu início a uma negociação trabalhosa com os herdeiros do cantor e violonista baiano. Eles, por fim, optaram pela liberação do material.
O trabalho de remasterização ficou a cargo de Carlos Freitas, que havia trabalhado em outros projetos da discografia de João.
“Por se tratar de uma gravação ao vivo, tive muito cuidado ao restaurar o áudio. Primeiro eliminei os ruídos e chiados, normais em uma gravação ao vivo. Depois, foquei no timbre do violão e da voz do João,” diz Freitas. “Ele tocava e cantava bem leve, um show bem intimista com microfones abertos no limite, por isso se captou a ambiência do teatro.”
João Gilberto é um dos músicos mais importantes do século XX. Uma das suas características principais é uma batida de violão que Gilberto Gil, discípulo de primeira hora, definiu como “samba desossado”.
Basicamente, João recria no instrumento o som da percussão de um grupo de samba. Profundo conhecedor da música brasileira, trazia em seu repertório desde canções do início do século passado a composições de seu tempo – no caso, as obras de Tom Jobim & Vinicius de Moraes, Tom Jobim & Newton Mendonça, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre muitos outros, até boleros e standards do jazz.
As inovações tecnológicas que foram assimiladas pelos estúdios no final dos anos 1950 auxiliaram João na hora de desenvolver um estilo de interpretação – baixinho, quase no ouvido, mas de emissão perfeita.
O cantor e violonista baiano é como aqueles jogadores de futebol de outrora, que passam meses sem errar um passe. No caso de sua obra, ele jamais lançou um disco abaixo da média – e este ao vivo gravado em terras paulistanas figura como ponta de lança de sua coleção. “Estava leve, feliz, e à vontade, o que refletiu na sua performance. Com certeza, foi uma das melhores apresentações do João, registradas,” elogia Freitas.
É, realmente, um momento mágico. O principal chamariz é Rei Sem Coroa, de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição, que ele nunca havia registrado em disco. Herivelto assina também Izaura, ao lado de Roberto Roberti, uma canção que ele raramente se fartou de cantar ao vivo, mas foi pouco registrada em suas gravações.
João se permite brincadeiras que deixam a audição deliciosa: muda o andamento de Retrato em Branco e Preto, de Chico Buarque e Tom Jobim; faz floreios vocais em Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, capricha nos tons graves de O Amor em Paz, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. O ponto alto é Wave, também de Tom.
João deixa a melodia para a plateia enquanto faz a parte da harmonia, tornando sua execução um momento único.
Vaia de bêbado não vale, mas o canto de uma plateia respeitosa… isso é tudo de bom.