Assim como a Itália foi o berço do Renascimento, que colocou o homem no centro do mundo, o Brasil pode ser o berço de um novo humanismo ecológico – um movimento reconciliatório entre a humanidade e a natureza, entre o centro e a periferia, o passado e o futuro.
Essa tese-manifesto não parte de nenhum ‘ecochato’, nem de um ativista ‘sonhático’ à la Greta Thunberg.
Esta é a ideia central de Gigante pela própria natureza, o livro recém lançado por Miguel Setas – o CEO da CCR que por sete anos comandou a operação brasileira da Energias de Portugal (EDP).
No livro, Miguel narra sua trajetória executiva, divide suas impressões sobre o Brasil e detalha as potencialidades da economia verde para a transformação do País.
“Esse novo modelo de pensamento precisa florescer a partir do Brasil: é aqui que está o ativo ecológico,” Miguel disse ao Brazil Journal. “As pessoas precisam se conscientizar dessa oportunidade de ouro para que ocupemos nosso espaço no mundo. Precisamos superar um pouquinho nossa síndrome de vira-lata.”
Para ele, as lideranças empresariais brasileiras precisam ir além do ESG – em sua opinião, um conceito limitado e insustentável – para que o País possa assumir seu “desígnio” de ser a maior potência ecológica global.
Na EDP Brasil, Miguel coordenou iniciativas para a redução da emissão de carbono da companhia. Na CCR, assumiu com esse mesmo mandato.
Formado em física e com mestrado em administração, Miguel começou a carreira como consultor da McKinsey em Portugal. Na entrevista, ele fala de sua “visão um pouco utópica” – que ele prefere ver como uma grande oportunidade para o Brasil.
O evento de lançamento será hoje às 19 horas na Livraria da Travessa do Shopping Iguatemi.
No Brasil, metade das residências não têm esgoto, e os índices de miséria e violência estão entre os maiores do mundo, assim como a desigualdade. Não é improvável que o País esteja no epicentro deste novo ‘humanismo ecológico’ que você defende?
Não tenho a pretensão de fazer políticas públicas. Proponho uma reflexão filosófica. Defendo um modelo de desenvolvimento que eu chamo de evolução integral. Na base desse modelo está o que eu chamei de sobrevivência – água, alimentação, saúde. O básico do básico.
É óbvio que uma economia como a brasileira precisa ter isso assegurado para poder começar a escalar nessa evolução, e que vai para os níveis mais elevados de desenvolvimento.
Mas só se transforma uma sociedade mudando os valores. O mundo só vai conseguir fazer uma trajetória diferente quando mudar o chip, para o humanismo ecológico.
Nos últimos milênios, a história foi marcada pelo embate do homem contra a natureza. A chegada dos portugueses ao Brasil foi isso. Precisamos ter uma visão de que o homem é a natureza.
Se tem algum país no mundo que está preparado para esse novo paradigma é o Brasil. Tem a matriz energética mais limpa do mundo, com 85% de energia renovável.
O Brasil vai ser o produtor do hidrogênio verde mais barato do mundo, e esse combustível vai ser o principal driver de descarbonização da economia.
Essa bioeconomia pode ser uma alavanca para o desenvolvimento econômico.
Qual o tamanho dessa oportunidade?
Um estudo do Boston Consulting Group, que usei como referência, vê uma oportunidade de US$ 2 trilhões a US$ 3 trilhões para o Brasil até 2050. Isso representa dobrar o investimento privado no País.
São quatro áreas principais: agricultura sustentável, mercado de carbono, indústria verde e energia renovável.
O aço brasileiro, por exemplo, tem a menor pegada de carbono do mundo, assim como o cimento brasileiro.
Vejo uma oportunidade gigante para os investimentos. É uma visão um pouco utópica, eu sei, mas é a utopia que nos faz avançar.
Estou tentando fazer a minha parte – e faço aqui um apelo ao empresariado. Essa é uma equação do público com o privado. O empresariado brasileiro precisa assumir essa liderança.
Nós não temos o direito de colonizar a vida dos nossos descendentes. O que estamos fazendo hoje é colonizar o futuro. No passado a colonização era territorial, agora a colonização é temporal.
O planeta tem um sistema produtivo, tem a urbanização, tem a vida em sociedade, tem o legado civilizacional, a cultura. São coisas a que atribuímos pouco valor às vezes.
Como será a transição rumo a uma economia verde?
No Brasil não será um modelo como o dos países ricos do Norte. Aqui há 33 milhões de pessoas com fome e mais de 100 milhões com incerteza alimentar. São pessoas que almoçam, mas não sabem se vão jantar. Essas pessoas precisam de dignidade.
Por isso defendo a agenda de evolução integral. Para a América Latina, o mais urgente é dar dignidade às pessoas que estão no limiar da pobreza.
Uma coisa muito estranha, sinceramente, é que se tirou o E de economia do ESG. O triple bottom line original era economia, ambiente e sociedade. A economia estava lá.
É fundamental termos uma economia regenerativa e redistributiva, mas não há que ter vergonha com a defesa do crescimento econômico.
Em suas conversas com empresários, como eles reagem a essa sua visão? Eles acreditam que o Brasil, com todas as suas mazelas sociais, seja capaz de exercer esse protagonismo?
Tenho alguns amigos a dizer que o Brasil é um país de problemas. Eu gosto de ver pelo lado positivo.
A escala continental do País e a sua diversidade permitem que ele seja um laboratório vivo de soluções para os grandes problemas da sociedade.
Dou dois exemplos que gosto de citar. Primeiro, o SUS, o Sistema Único de Saúde. Tem um pouquinho de turbulência, mas funciona. Está em todo o País.
Outro exemplo é o Senai. Há 70 milhões de pessoas formadas nas últimas seis décadas, certamente uma das maiores instituições de educação profissional no mundo. Isso é um canhão.
Eu gosto de falar sobre o novo humanismo. Faço uma comparação com o que aconteceu no Renascimento, em Florença, Gênova, Veneza. As cidades italianas foram o centro do Renascimento, de uma nova forma de ver o mundo.
Gosto de ver o Brasil no centro desse novo mundo visto pela lente da ecologia. O humanismo ecológico é deixar de ter uma visão antropocêntrica para passar a ver o ecológico como o centro da nossa vida, da nossa existência.
Esse novo modelo de pensamento precisa florescer a partir do Brasil, é aqui que está o ativo ecológico.
As lideranças do Brasil precisam se conscientizar dessa oportunidade de ouro, para que ocupemos o nosso espaço no mundo. Precisamos superar um pouquinho nossa síndrome de vira-lata.
As receitas líquidas do autor, no primeiro ano de lançamento do livro, serão doadas ao projeto CORA – Corações da Amazônia, para prover bolsas universitárias para povos indígenas na Amazônia legal, uma iniciativa do Instituto BEI.