Sempre que dá uma palestra sobre empreendedorismo, Lucas Marques, o COO e sócio do Méliuz, começa perguntando o que a platéia acha que significa empreender.
As respostas variam de “uma forma de mudar o mundo” a “gerar inovação” ou “resolver os problemas das pessoas.”
Depois que todo mundo fala, Lucas pega um pincel e escreve no quadro sua própria definição:
“Empreender: a arte de se f*der todos os dias e não desistir.”
Agora, Lucas e Israel Salmen, o fundador do Méliuz, transformaram essa visão direta (senão muito elegante) num livro — cujo título você já deve imaginar.
“Empreender: a arte de se f*der todos os dias e não desistir” (224 páginas, Editora Gente, R$ 30) não é uma biografia empresarial tradicional. Em vez de narrar o sucesso, os dois decidiram focar no fracasso.
O livro — escrito numa linguagem leve e informal e em apenas cinco meses — é um compilado dos principais erros que os dois cometeram nos 10 anos de história do Méliuz (do Powerpoint ao IPO) e das cicatrizes de cada derrota.
A grande inspiração dos autores foi “The hard thing about the hard things”, o best-seller de Ben Horowitz, o cofundador da lendária Andreessen Horowitz, que conta os bastidores (pouco glamourosos) de grandes empresas de sucesso.
Israel e Lucas conversaram com o Brazil Journal sobre como se f*der e continuar tentando.
Porque vocês decidiram escrever um livro contando os erros que cometeram em vez de falar do sucesso?
Lucas: São vários motivos. Primeiro, quando lemos “The hard thing about the hard things”, o livro que nos inspirou, sentimos uma conexão muito forte. Porque quando você está empreendendo sozinho você acha que só você é ruim, que só você faz cagada, que só você é um fracassado… Você olha no Instagram, na Exame, no Brazil Journal e só vê sucesso.
Startups fazendo captação, dando certo… e só você se ferrando. E lendo “The hard thing” você pensa: ‘o cara é o Ben Horowitz, um dos maiores VCs do mundo, e ele já se ferrou pesado, já errou igual a gente erra.’
Então, o primeiro ponto é que sentimos falta entre os livros de empreendedorismo brasileiro de um que tivesse menos glamourização e mais vida real. O primeiro espaço que quisemos ocupar foi esse. Falar para empreendedores: ‘você não está sozinho. Você que tá aí, sofrendo… fica calmo! Faz parte.’
O segundo ponto é que as melhores mentorias que tivemos não foram aquelas em que o empreendedor deu um mapa da trilha do sucesso, mas aquelas onde o empreendedor compartilhou as cagadas que ele tinha feito e conseguimos aprender com os erros deles.
Tem uma frase que diz que “as pessoas acertam de jeitos diferentes, mas sempre erram do mesmo jeito.” Tem alguns erros de startups que são muito comuns, o erro de cap table [a lista de acionistas], por exemplo, é um clássico. Todo mundo erra nisso.
Parafraseando o título do livro, qual foi a situação em que vocês mais se f**eram nos 10 anos de Méliuz?
Israel: Com certeza foi o ‘Projeto Guerra’, que narramos no primeiro capítulo e foi uma nova linha de negócios que decidimos lançar no Méliuz. Vimos um player do mercado fazendo bem esse modelo, crescendo e expandindo para algumas praças, inclusive a nossa, em Belo Horizonte, e nos sentimos na obrigação de lançar algo similar. Mas não bastava ser algo pequeno, tinha que ser um projeto que a gente entrasse para causar muito impacto no mercado. Isso fez a gente menosprezar o MVP e ir direto para tentar o ‘big win’.
A melhor forma de explicar qual foi o erro que cometemos é contar que vínhamos de 2011 até 2016 acertando muito mais do que errando, e com pouco capital. E o que começou a acontecer é que toda a diligência que no início do negócio a gente fazia — criar as estratégias, colocar as ideias no papel, crescer devagar depois que o produto já estava comprovado — todo esse playbook, sem perceber, começou a ser menosprezado. E uma coisa que aprendi nessa experiência é que o empreendedor tem o dom de dar aquela energia, de gerar aquele poder de convencimento para as pessoas correrem atrás de um objetivo em comum. Só que esse poder tem dois lados. Ele pode fazer o time correr atrás de uma coisa que faz muito sentido, mas também pode fazer o time correr atrás de uma coisa que não foi bem pensada.
Então juntou dois problemas: uma certeza de que ia dar certo, ou uma probabilidade que consideramos muito pequena de dar errado, com o poder do empreendedor de convencer a equipe… Me vem memórias de eu dando palestras pro time inteiro presente e inflamando o time para entrar arrebentando nesse projeto. E o time tinha certeza que ia dar certo, porque o time comprou a minha energia. Então o empreendedor tem que tomar cuidado com isso, porque ele consegue convencer o time até a pular do abismo, que quase foi o nosso caso.
Essa história me lembra um pouco um outro capítulo do livro que chama “Admita que você é um m*rda” e que fala da necessidade do empreendedor ser humilde. Nesse caso me parece que vocês deixaram um pouco de lado essa visão e passaram a achar que tudo ia dar certo. Você tem essa leitura também? Acha que teve a ver com isso?
Israel: Eu acho que sim. Acho que teve a ver com isso sim. A gente estava tão convicto daquilo e virou um negócio tão emocional de fazer dar certo que talvez a gente não tomou o número de mentorias necessárias para fazer aquele negócio acontecer da melhor forma. Se tivéssemos escutado mais pessoas, feito uma diligência maior, talvez não tivéssemos passado tanto por esses problemas.
Lucas: E essa história está no primeiro capítulo do livro não por acaso. Foram tantos erros, tantas cagadas juntas, que daria pra fazer uma entrevista só sobre esse episódio. E ao longo do livro vamos resgatando várias vezes erros diferentes desse projeto. Quando você achar que não tem mais, você vai ver que tem.
Ainda falando desse capítulo específico, vocês acham que falta humildade no ecossistema brasileiro de startups?
Israel: Não são todos, mas existem muitos empreendedores que ao escutar algum posicionamento seu numa mentoria já tenta rebater logo de cara, sem tentar assimilar primeiro o que foi falado. Eu me sinto desconfortável nessas situações porque depois de tudo que eu passei eu acho que é importante em vários momentos da sua vida você assumir, pelo menos por alguns minutos, que você é a pessoa mais burra da mesa. O ato de escutar e tentar assimilar da melhor forma possível nos trouxe até aqui. Tomamos muita porrada calado, escutamos e fomos aplicando o que fazia sentido ou não pro nosso negócio.
Vocês contam no livro de problemas que tiveram com sócios e da importância de “casar com a pessoa certa” pro sucesso de um negócio. Como escolher o sócio ideal?
Lucas: Tem um caso emblemático que conto que é de um conhecido meu que saiu da Ambev e me ligou falando que ele queria empreender, e que tinha se juntado com três sócios. Eu pedi pra ele me contar um pouco mais da ideia, dos sócios dele, e ele me disse que a ideia surgiu quando eles estavam juntos num churrasco. Na hora eu falei: ‘peraí, os quatro sócios são a galera da ideia do churrasco? Esse é o motivo de serem esses quatro os sócios?… (risos). Tem muitos casos bizarros assim de início de sociedade. Em geral, as pessoas menosprezam muito a importância de escolher o sócio certo.
Israel: Eu acho que tem que ser quase um processo de recrutamento. Igual quando você quer contratar um bom engenheiro ou um bom gerente de marketing. Você tem que fazer uma diligência, conversar com várias pessoas, entender se os valores daquelas pessoas são similares aos seus. Tem que ser um recrutamento sem pressa, esse é o recado. Você tem que conhecer a pessoa bem, tem que testar. E acho que existem vários mecanismos legais para você testar essa sociedade antes que ela vire uma realidade.
Se vocês tivessem que dar apenas uma dica pra uma pessoa que está começando a empreender agora, aquela dica que vocês consideram mais valiosa, qual seria?
Lucas: Pra mim são duas. Uma delas é que nem todo mundo nasceu pra empreender. E se você perceber que você não tem esse perfil, que você não entenda isso como uma coisa ruim. O mundo precisa também de pessoas que não sejam empreendedores.
Mas, se você identificar que seu perfil é sim o de empreendedor, a dica que eu daria é o título do livro. Saiba que você vai sofrer muito, que não é uma jornada só de felicidade, é de muito sofrimento, de muito fracasso, de muitos erros. De momentos de muita solidão e de muita ansiedade e pressão. O que eu tenho visto é que muito empreendedor bom fracassa não porque ele tinha uma ideia ruim, ou porque fez m*rda, mas porque ele desiste. Porque ele achou que só ele estava fracassando, que o resto estava tendo sucesso e vai lá e desiste.
Tem um filme chamado “O Walt antes do Mickey” que mostra exatamente isso. A explicação do sucesso dele não foi porque ele era um gênio, mas porque ele era persistente pra caralho. O grande mote do filme é esse.
Vou te dar um exemplo prático: a Mariana [Ramos Dias], fundadora da Gupy, veio falar comigo antes de fundar a empresa e me falou que queria empreender. Na hora eu falei pra ela: ‘Mari, você sabe o quanto eu gosto de você, acho você genial e acho que vai dar certo. Mas você está preparada para passar três anos infernais da sua vida? Quase morrer de fome, se ferrar, ver todo mundo falando que você é maluca?’ E eu lembro que no dia ela ficou muito assustada mesmo e me falou: ‘Lucas, como assim? Três anos?’ Eu disse: ‘três anos, antes disso esquece, você não vai ter dinheiro, vai ficar pobre, vai sofrer…’
Depois, quando ela já estava com dois anos de empresa, ela me ligou de novo: ‘Lucas, são três anos mesmo? Porque eu não aguento mais, tá muito difícil’ (risos).
Empreender é isso.