O fim do século XIX foi um ponto de virada na história do capitalismo. As ferrovias integravam o continente americano, o petróleo da Pensilvânia alimentava indústrias e fortunas, e a energia elétrica transformava noites em dias nas grandes cidades. Os primeiros arranha-céus se erguiam em Nova York, impulsionados por elevadores recém-inventados, enquanto os bondes elétricos começavam a redefinir a mobilidade urbana.
Nesse ambiente em que surgiam indústrias colossais, ganhava forma uma outra invenção, menos visível mas igualmente transformadora: a advocacia empresarial.
Em White Shoe: How a New Breed of Wall Street Lawyers Changed Big Business and the American Century, John Oller — um ex-advogado de Wall Street tornado escritor — leva o leitor ao ápice da Gilded Age para acompanhar a ascensão dos advogados que moldaram o capitalismo americano. (Compre aqui)
A expressão white shoe – que se refere aos sapatos brancos usados pelos ex-alunos da Ivy League que dominavam Wall Street – passou a designar a elite jurídica e financeira de Nova York.
Ao contrário da geração anterior — formada por advogados de tribuna, destacados pela sua retórica e erudição filosófica — os white shoe se sobressaíam unindo a técnica jurídica ao conhecimento aprofundado de finanças e negócios. Estavam mais presentes nas salas de reuniões em que se fechavam contratos e transações do que sustentando causas perante magistrados ou júris.
Essa nova “raça” de advogados foi responsável por arquitetar as grandes combinações de negócios e oferecer os alicerces jurídicos necessários ao desenvolvimento da economia e do mercado de capitais a partir do século XX.
Muitos críticos afirmam que foram eles que ensinaram os chamados “robber barons” — como John Pierpont Morgan, Edward H. Harriman, John D. Rockefeller, Henry Clay Frick e Thomas Fortune Ryan — a operar nos limites (e às vezes à margem) da legalidade, concebendo estruturas societárias sofisticadas que permitiam o controle de vastos conglomerados industriais e financeiros.
Esses magnatas se valiam de práticas então não vedadas pela legislação, como os interlocking directorates — a participação dos mesmos diretores em múltiplas empresas concorrentes — e a emissão de watered shares, ações infladas artificialmente em relação ao valor real dos ativos.
Tais expedientes, hoje vistos como abusivos, circundavam na época a linha tênue entre o arrojo dos grandes empresários e a manipulação ilegal do nascente mercado de capitais americano.
Os chamados “Big Business” foram um dos principais temas da pauta política da “Progressive Era”, em que os governos de Theodore Roosevelt, William Howard Taft e Woodrow Wilson buscaram implementar reformas para limitar o poder das grandes concentrações de negócios.
Neste contexto, os white shoe, inicialmente conservadores quanto a grandes reformas, compreenderam intuitivamente que a regulação não seria uma ameaça se fosse encarada como uma etapa do amadurecimento do capitalismo laissez-faire até então praticado.
O livro conta como esses advogados, então, atuaram como mediadores entre o Estado e o capital — ajudando, de um lado, seus clientes a se adaptar, e, de outro, articulando de forma influente no mais alto escalão do governo americano para a elaboração de leis e a formação de precedentes da Suprema Corte. Em grande parte graças a eles, o livre mercado foi preservado nos EUA, não obstante uma série de inovações regulatórias terem sido implementadas nesse período.
Entre os biografados no livro, destacam-se advogados que lançaram as bases das grandes white shoe law firms, como Paul Cravath (do Cravath, Swaine & Moore LLP), cuja visão profissionalizou a advocacia empresarial; William Nelson Cromwell (do Sullivan & Cromwell LLP), o artífice de reestruturações e combinações societárias de escala inédita; e Francis Lynde Stetson (fundador do Davis Polk & Wardwell LLP), um trusted advisor de JP Morgan e figura central na consolidação das primeiras grandes combinações de negócios na indústria de ferrovias e de aço.
O livro conta o começo da carreira de Paul Cravath a partir de sua atuação na célebre Guerra das Correntes — o clássico litígio de propriedade intelectual travado no fim do século XIX entre Thomas Edison, o inventor da corrente contínua (DC), e Nikola Tesla, que, aliado ao empresário George Westinghouse, promovia a utilização da corrente alternada (AC) como padrão de eletrificação.
Representando Westinghouse, Cravath destacou-se por sua habilidade estratégica na condução do caso. Essa experiência marcou o início de sua reputação em Wall Street, consagrando o chamado “Cravath System”: um modelo de gestão de grandes escritórios e formação de profissionais que transformou a prática da advocacia empresarial e até hoje é tida como sinônimo de alto padrão advocatício.
Em outro caso, o livro destaca a atuação decisiva de William Nelson Cromwell na construção do Canal do Panamá. Advogado dos investidores franceses da antiga companhia de Ferdinand de Lesseps, foi Cromwell quem articulou, perante Washington, a escolha da rota panamenha (até então pertencente à Colômbia) em vez da nicaraguense — decisão que, conforme o livro, alterou de forma permanente a geografia do comércio mundial.
Cromwell também era conhecido como o “physician of Wall Street” por sua capacidade de reorganizar empresas em crise. Também se atribui a ele a concepção moderna da holding company — uma estrutura societária criada para substituir os trusts, então vedados pelas leis antitruste, de modo a permitir que grandes conglomerados continuassem a concentrar o controle de diversas sociedades sob uma mesma direção.
Para fechar o trio dos três principais white shoe, há o veterano Francis Lynde Stetson, conhecido como o “Attorney General of J. P. Morgan” e uma das figuras centrais na consolidação dos grandes conglomerados industriais do início do século XX.
Stetson foi o principal responsável por estruturar a Northern Securities Company, uma das maiores combinações de negócios da época, criada por JP Morgan e James J. Hill para integrar as principais ferrovias do norte dos EUA sob uma única holding.
Após a decisão da Suprema Corte que determinou a dissolução da companhia em 1904, coube a ele conduzir a complexa reorganização do grupo. Poucos anos depois, liderou a consolidação do monopólio da indústria de aço pela US Steel, também de Morgan, após terem ajudado o governo a conter o pânico financeiro de 1907.
Na ausência de um banco central — o Federal Reserve só seria criado em 1913 — coube a Morgan coordenar pessoalmente o resgate do sistema financeiro, reunindo em sua biblioteca os principais banqueiros de Nova York e organizando aportes emergenciais para salvar instituições em colapso. Sob sua liderança, conglomerados privados injetaram liquidez em bancos e trust companies insolventes, restabelecendo a confiança do público e evitando o colapso generalizado do crédito
Representando um outro lado da moeda, o livro também destaca Samuel Untermeyer, uma exceção notável ao universo homogêneo e aristocrático dos grandes escritórios da época. De origem judaica e alheio à cultura WASP (“White Anglo-Saxon Protestant”) que predominava em Wall Street, Untermeyer era marginalizado pelas grandes bancas. Ficou conhecido por seu enfrentamento direto aos grandes monopólios, defendendo acionistas minoritários, pequenos produtores, liderando investigações parlamentares e levantando a bandeira de uma regulação mais rigorosa das finanças.
Era um advogado temido pelos magnatas de sua geração e chegou a interrogar (e constranger) no banco das testemunhas figuras como John D. Rockefeller e o próprio Morgan — o que poucos ousariam fazer.
Os white shoe firms também participaram ativamente da alta cúpula política da época. Como exemplos, há Charles Evans Hughes, que concorreu à Casa Branca após ter sido Justice da Suprema Corte, e mais tarde voltou ao tribunal como Chief Justice; Elihu Root, que foi Secretário de Guerra nos governos McKinley e Theodore Roosevelt, além de Secretário de Estado deste último e senador; George Wickersham, que exerceu o cargo de Procurador-Geral no governo Taft; e John Foster Dulles, que atuou como assessor jurídico da delegação americana na Conferência de Paz de Versalhes, ao final da Primeira Guerra, e mais tarde se tornaria Secretário de Estado de Eisenhower.
White Shoe é uma obra multibiográfica e fundamental para compreender como o capitalismo corporativo e a advocacia empresarial se entrelaçam em suas origens, revelando as bases institucionais, culturais e éticas do sistema econômico no qual ainda operamos.
Caio Malpighi é advogado tributarista no Vieira Rezende Advogados e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), onde também é professor-assistente.











