Antonio Salvador já estava há cinco anos como vice-presidente de RH e sustentabilidade do Grupo Pão de Açúcar quando a companhia decidiu criar uma área para concentrar as iniciativas inovadoras. 

11249 0e03efe4 00b7 18c9 f3ca 40d9efc67c04A ideia era trazer uma pessoa de fora para assumir o cargo de ‘chief digital officer’ e estruturar esse núcleo. Salvador liderou as entrevistas com os potenciais candidatos, mas ninguém parecia bom o suficiente. O profissional precisava combinar mentalidade inovadora com pragmatismo e velocidade – senão, fatalmente seria atropelado ou esquecido.

O próprio Salvador resolveu se candidatar ao cargo. O então CEO, Peter Estermann, inicialmente se surpreendeu, mas as credenciais de Salvador pareciam qualificá-lo para a função: ele havia conduzido processos de transformação de gestão tanto como consultor na PwC quanto como executivo em empresas como a HP. 

Salvador ficou um ano no cargo e foi responsável por decisões como a compra da James, a startup de delivery.

“Transformação digital. Uma jornada que vai muito além da tecnologia” (Atelier de Conteúdo, 176 páginas), que acaba de ser lançado, é o resultado de sua parceria com o amigo Daniel Castello, consultor e mentor Endeavor. Os dois se incomodavam por haver pouca literatura sobre o assunto no Brasil. A maior parte ainda vem de conteúdos traduzidos de especialistas estrangeiros.

O livro traz casos de empresas que Salvador e Castello acompanharam de perto ou nos quais se aprofundaram durante a pesquisa para o livro, e inclui entrevistas com executivos de companhias como Natura, Gerdau e Ambev.

É uma leitura particularmente útil para empresas tradicionais que, tentando se reinventar, muitas vezes ficam perdidas em meio à avalanche de informações e pressão do mercado. A mensagem principal é que as mudanças não passam apenas por contratar novas ferramentas — e sim por uma mudança na mentalidade e pelo desenvolvimento de novas competências.

“O grande problema da inovação é cultural, e não tecnológico,” Ronaldo Iabrudi, o ex-chairman do GPA que trabalhou com Salvador, disse ao Brazil Journal. “É você fazer o cara com 30 anos de barriga no balcão se comunicar de uma forma diferente e entender que precisa mudar os processos.”

Abaixo, excertos do livro.

Quando a Gerdau, a maior empresa produtora de aço do Brasil e uma das 30 maiores do mundo, começou a pensar em transformação digital, seus executivos encontraram poucas referências de negócios industriais que haviam passado por esse processo. Observaram casos no segmento de óleo e gás, que seriam similares ao setor em que atuavam, e conversaram com algumas pessoas que diziam que o uso de novos processos poderia aumentar em 20% a geração bruta de caixa por conta da eliminação de ineficiências. Era uma boa perspectiva, que justificaria o investimento. Incentivados pelo contexto e pelos números que encontraram, começaram a implantar mudanças em várias áreas. As iniciativas se resumiam a novas tecnologias para a operação: drones para conferir o estoque, sensores para monitorar a performance das máquinas e realidade aumentada para fazer treinamentos.

Contudo, os executivos notaram que a “pirotecnia”, apesar de melhorar alguns processos da rotina, não tinha impactado os números – portanto, havia algo errado naquela transformação digital. Deram um passo para trás a fim de entender o que não estava funcionando. Voltaram para o mercado. Conversaram com consultores, donos de startups e fundos de venture capital. Visitaram mais empresas.

“No primeiro ano, tínhamos um entendimento equivocado de que transformação digital estava relacionada à tecnologia. Avançamos, mas olhamos o balanço da empresa no final do ano e não conseguimos ver nenhum ganho quantificável”, conta Gustavo Werneck, atual CEO e protagonista das  mudanças quando era líder da divisão de Aços Longos, o maior negócio da empresa. “Entendemos que a tecnologia era só um dos pilares da  transformação digital e o mais simples”, diz.

Depois da primeira experiência, os executivos se deram conta de que qualquer um poderia adquirir ferramentas e dispositivos eletrônicos e que os demais pilares, como cultura organizacional e utilização de dados, é que seriam decisivos para de fato levar a companhia a um nível de mudança mais profundo. Então, voltaram para a prancheta e começaram a desenhar um roadmap digital e a estruturar o pensamento considerando esses outros fatores.

Sem dúvida, a tecnologia faz parte da transformação digital, mas, como a Gerdau percebeu, é só um elemento dela. Certamente não foi a primeira nem será a última empresa a chegar a essa conclusão. É comum que, na ânsia de se tornarem digitais, as companhias optem pelas soluções mais apelativas e com implementação mais rápida – como um drone sobrevoando o estoque. No entanto, o que realmente faz a diferença não é óbvio nem fácil de implementar.

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Companhias no contexto de transformação digital não podem ter meia dúzia de profissionais que pensam e milhares de outros que só executam. A inteligência não pode vir apenas de cima ou de pequenos grupos específicos. Todos devem ser capazes de questionar, criar, inovar e se comunicar o funcionário do escritório ou aquele que vai para a rua; o analista ou o vice-presidente. O valor está no raciocínio coletivo, na constituição de um campo intelectual em que o pensar seja estimulado pelos líderes e pelos pares.

Como fazer isso? Não há uma resposta única, mas temos alguns indícios do que funciona. Para criar uma cultura que permita novos comportamentos e novos jeitos de tomar decisão, a transformação na liderança é imprescindível. Às vezes isso significa trilhar um longo caminho de desenvolvimento ou trocar as pessoas que ocupam os cargos mais altos nas empresas, embora haja muitos casos em que os líderes “antigos” se disponibilizam para a mudança. Seja como for, a nova cara da empresa precisa começar de cima, com o conselho e as pessoas que ocupam os cargos mais altos. Isso porque essas decisões provavelmente terão impacto de curto prazo no negócio e precisam ser apoiadas por quem vai abrir mão desses resultados imediatos em troca de uma aposta de que no futuro a marca continuará sendo tão ou mais valiosa quanto no presente.

Já ouvimos empresas dizerem que fariam uma transformação cultural montando um programa de trainee e colocando jovens pensando diferente na base. De que adianta essa estratégia se na primeira reunião eles vão esbarrar em um chefe irredutível com a mentalidade da economia antiga? Juntar jovens com perfil digital, sem orçamento e com uma liderança inflexível provavelmente só vai gerar mais conflito e frustração. Em algumas organizações, há um ressentimento, ainda que velado, do gestor que alcançou recentemente o cargo de chefia e que comemora ter chegado sua vez de comandar, delegar e punir. É um perfil que certamente não ficará satisfeito com jovens questionadores e tomada de decisão descentralizada. Se não houver alguém acima dele para avisar que o velho comportamento não será aceito, nada mudará.

A Gerdau é um bom exemplo de empresa que está conseguindo fazer essa mudança cultural, começando justamente pelas lideranças. Não foi um processo rápido, mas foi efetivo e criou na companhia as bases necessárias para fazer a transformação digital. O objetivo foi reduzir a hierarquia e aumentar a colaboração. “A empresa era burocrática e brigava com as metodologias ágeis, porque todas as decisões eram complexas e tinham que subir para um comitê. A gente não conseguiria fazer a transformação digital da maneira como ela funcionava. Então, fizemos um choque cultural”, conta o CEO, Gustavo Werneck.

A motivação para o trabalho, segundo Caroline Carpenedo, diretora de recursos humanos e responsabilidade social da Gerdau, veio de um processo de revisão do negócio. A equipe percebeu que enfrentaria um cenário desafiador, com a concorrência internacional e a entrada da tecnologia em seu mercado. A conclusão foi de que era necessário modernizar a cultura para construir os próximos cem anos.

O primeiro passo foi fazer um diagnóstico, envolvendo todos os colaboradores da empresa e seus 5 mil líderes no Brasil e no mundo, por meio de workshops e entrevistas. Os resultados reforçaram quais eram as alterações necessárias na cultura. Estabeleceram-se quatro pilares: simplicidade, abertura, autonomia com responsabilidade e líderes desenvolvendo líderes. Caroline recorda uma campanha emblemática de comunicação interna. No escritório de Porto Alegre, na escada que subia em direção às salas das diretorias corporativas, foi colocado um adesivo que provocava aqueles buscando aprovação: “Tem certeza de que você precisa subir?”. Outra medida eficaz consistiu em eliminar as salas exclusivas para os diretores. Atualmente, o CEO trabalha em um ambiente com todos os outros heads de área, com uma sala de apoio para reuniões confidenciais. 

O mais importante, porém, foi a disciplina para fazer a disseminação top-down, ou seja, os líderes eram os exemplos para cascatear a nova cultura entre os times, do escritório ao chão de fábrica. Tratou-se de um processo de educação, tendo os líderes como modelos. A alta liderança voltou à sala de aula: teve seis meses de treinamento, coaching cultural e workshops para aprender sobre os quatro atributos. Gustavo Werneck descobriu que o atributo que mais tinha de trabalhar era a abertura. Assim, aprendeu a entrar nas salas de reunião e dizer que também estava em processo de desenvolvimento, dando sinais para criar a conexão e mostrar seu esforço. “Só funciona se você está o tempo todo rodando a empresa, comunicando, conversando, sendo um exemplo. Não adianta eu falar que a empresa vai ser assim e achar que amanhã será. Isso exige dedicação e gastar muita sola de sapato”, afirma ele.