Em uma rua de Nápoles, os pedestres ficam todos paralisados, como em um transe místico, admirando o rapaz de abrigo esportivo e basta cabeleira encaracolada que, dentro de seu carro, parece indiferente ao pasmo das pessoas a seu redor. “É ele!” diz o adolescente Fabietto Schisa a seu irmão mais velho, Marchino.

Mas seria mesmo ele? Chegava finalmente à cidade o craque tão esperado pelos torcedores do time local? Difícil saber. Naquela altura de 1984, a contratação do famoso jogador argentino pelo Napoli ainda era uma notícia que os jornais às vezes confirmavam, às vezes desmentiam. Mesmo assim, Fabietto volta para casa certo de ter visto Diego Maradona.

Em A mão de Deus (È stata la mano de Dio), esse é o momento no qual Fabietto, interpretado com grande sensibilidade por Filippo Scotti, chega mais perto de seu ídolo (ou, pelo menos, de um sósia de Maradona).

Lançado em dezembro pela Netflix, o filme do diretor italiano Paolo Sorrentino – que em “Juventude” (2015) já colocara em cena um ex-jogador vaidoso e obeso claramente inspirado em Maradona – não trata propriamente de futebol. É antes um drama familiar, carregado de elementos autobiográficos: Fabietto passará por um trauma que espelha um evento triste na adolescência do cineasta, e até o prédio em que o personagem vive é o mesmo em que Sorrentino cresceu.

Embora não participe da trama como personagem efetivo, Maradona é uma presença poderosa, uma espécie de mito popular em torno do qual Fabietto organiza sua trajetória. O título do filme se refere ao epíteto que o grande craque conquistou ao marcar seu famoso (ou infame, segundo os detratores) gol de mão no jogo em que a Argentina venceu a Inglaterra por dois a um, na Copa do Mundo de 1986. Mas também se refere a uma circunstância fortuita que decide o destino de Fabietto: porque foi ao estádio ver o Napoli jogar, o jovem escapa de um terrível acidente doméstico. A mão de Deus, ou de Maradona, salvou-o.

Esse incidente é um marco divisório do filme, que começa como uma comédia sobre uma excêntrica (mas muito típica) família napolitana e na meia hora final se converte em um soturno drama sobre a passagem para a vida adulta. O humor da primeira parte do filme é ruidoso, desbragado, mas a transição para a melancolia não é brusca. Há desde o princípio um fundo de tragédia e tristeza até nos personagens mais ridículos e divertidos.

Com seu jeitão de galã suburbano, Marchino (Marlon Joubert), irmão de Fabietto, sonha em ser ator, mas não consegue nem ser escalado como figurante em um filme de Federico Fellini (há aqui uma homenagem ao diretor que tanto influenciou Sorrentino). A tia Patrizia escandaliza a família ao tomar banho de sol completamente nua na proa de um barco durante um passeio de fim de semana, mas sua liberalidade sexual esconde um abismo de desespero que só o sobrinho Fabietto parece perceber.

Maria (Tersa Saponangelo) e Saverio Schisa (Toni Servillo, ator que já fez vários filmes de Sorrentino), pais de Fabietto e Marchino (e também de uma filha que nunca sai do banheiro), parecem serenos e amorosos em comparação à família estendida, sempre envolvida em brigas e barracos. Mas Saverio tem um caso com uma funcionária do banco onde trabalha. Esse é um falso segredo, que todos fingem desconhecer, até que a “outra” começa a telefonar para a casa da família. Maria extravasa a dor e a humilhação chorando convulsivamente – e fazendo malabarismo com laranjas. Essa esquisita reação da mulher traída representa bem a maestria de Sorrentino no equilíbrio de elementos emocionais díspares – o humor histriônico, o retrato psicológico intimista, o melodrama rasgado.

Em “A Grande Beleza” (2013), filme ambientado em Roma, Sorrentino observava os aspectos mais patéticos da vida contemporânea – a obsessão pela imagem nas redes sociais, o culto à celebridade, a santimônia de certas posições políticas, as imposturas do mercado de arte – pelos olhos cínicos do jornalista e escritor Jep Gambardella, vivido com charme incomparável por Toni Servillo. Em meio à vulgaridade no entorno de Jep, a beleza emergia só em certos momentos fugazes – por exemplo, na visita noturna a um palácio de aristocratas decadentes, ou na surreal revoada de flamingos pelos céus romanos.

Em A mão de Deus, ao contrário, Sorrentino convida o espectador a ver beleza na vulgaridade de sua terra natal. O mar de Nápoles e os fumos do Vesúvio resplandecem com o brilho da nostalgia, e a cena tão cheia de graça em que Fabietto leva os pais na garupa de uma lambreta para apartar uma briga na casa de Fabrizia nos faz acreditar que os instantes mais simples podem ser belos – ao mesmo tempo em que nos lembra que a beleza é sempre fugaz.