Meio século depois de seu desaparecimento, Pablo Picasso continua sendo um grande antes-e-depois na história da arte moderna. Considerado por muitos o maior artista do século XX, o gênio andaluz teve uma produção prolífica: dezenas de milhares de quadros, desenhos, impressões, ilustrações de livros e esculturas.

Para comemorar os 50 anos de sua morte, a França (onde o artista passou a maior parte da vida) e a Espanha fecharam um acordo para apoiar 50 exposições em instituições na Europa e nos Estados Unidos este ano.

Dentre todas essas comemorações, duas chamam a atenção por destoarem do formato esperado para um museu: são mostras sem paredes brancas, curadores tradicionais ou uma abordagem formal.

A primeira, no Brooklyn Museum, se chama It’s Pablo-matic: Picasso According to Hannah Gadsby.

Gadsby é uma comediante australiana conhecida por seu programa de TV Nanette, ganhador de um Emmy.  Na exposição em Nova York, ela aplicou seu humor característico e muita acidez em uma releitura feminista do legado do espanhol.

A outra exposição, em Paris, tem como curador Paul Smith, o estilista inglês conhecido por suas criações coloridas e divertidas.  Picasso Celebration: The Collection in a New Light está no Musée National Picasso em Paris (fotos acima e abaixo).

A relevância, o talento, a potência inventiva e a influência de Picasso em artistas de diversas gerações são incontestes, como admitem até seus críticos mais radicais. O que tem se buscado neste cinquentenário de sua morte é debater com mais profundidade questões como misoginia e colonialismo, fundamentais para a evolução social de lá para cá.

A exposição do Brooklyn tem sido alvo de muitas críticas. De fato, o resultado não impressiona. Ben Davis publicou no ArtNet um artigo duro, criticando a adaptação de uma sitcom para uma exposição de arte. “O que era novidade no Nanette foi a sugestão de Gadsby de que, depois do movimento #MeToo, a arte de Picasso não poderia ser apreciada,” escreveu Davis.

Pós-MeToo, a popularidade de Picasso entre os jovens caiu bastante. A forma como ele lidou com as mulheres (na arte e na vida pessoal) – bem como questões acerca de apropriação cultural, principalmente africana – incomodam as novas gerações e exigem que museus, curadores, artistas e acadêmicos tragam o tema para o debate público.

Picasso disse certa vez: ‘Você pode ter todas as perspectivas de uma vez!’ Em 2023, Gadsby ironiza: “Que herói. Mas diga-me, alguma dessas perspectivas é de uma mulher? Bem, então não estou interessada.”

A diretora do Brooklyn Museum disse ao The Art Newspaper que a mostra “não é sobre cancelar Picasso. Muito pelo contrário. Cancelar significa se recusar a se envolver. Recusando a conversa. Recusando a complexidade. A nossa é uma exposição que convida à complexidade. E estou confiante de que Picasso pode lidar com um pouco de complexidade. Na verdade, ele a convidou.”

O debate é fundamental, mas no caso dessa mostra, o conceito é melhor que a execução.

Por outro lado, a exposição em Paris foi cuidadosamente pensada durante cinco anos por Paul Smith com a ajuda curatorial da diretora do museu, Cécile Debray.

Smith passou parte da pandemia andando sozinho pelo acervo e pensando em como montar sua primeira mostra de arte. Ele conta que o processo foi instintivo e espontâneo, já que não é um especialista em Picasso.

(Na França é possível pagar impostos com obras de arte e foi assim que a Família Picasso quitou o colossal imposto sobre herança, com a entrega de centenas de obras que hoje formam o acervo do Museu Picasso.)

A visão de Paul Smith tira a sacralidade e o endeusamento à genialidade do artista, usando o humor e uma certa excentricidade sem abrir mão de uma provocação inteligente.

Por isso, a curadoria de Smith tem sido um sucesso de crítica. Artistas contemporâneos convidados como Guillermo Kuitca, Obi Okigbo, Mickalene Thomas e Chéri Samba criaram obras refletindo sobre o legado de Picasso para estimular o debate.

Ao mesmo tempo, o museu exibe no térreo a primeira grande exposição na França de Faith Ringgold, a artista americana feminista negra, cujo trabalho inclui releituras de Picasso e da cena artística de Paris do início do século XX.

Smith coloca as questões na mesa sem pretensão de ter as respostas.

É um deleite visitar as obras selecionadas do acervo do Museu Picasso dentro do imponente imóvel (o Hôtel Salé, do século XVII, situado no Marais) completamente transformado e rejuvenescido. Com paredes coloridas, colunas estampadas e tapetes listrados, Smith conseguiu criar uma explosão visual harmônica e convidativa.

O período azul de Picasso é apresentado em uma sala pintada de azul escuro do chão ao teto, os esboços das touradas estão em paredes vermelho-sangue, e a obra Le Déjeuner sur l’herbe em um ambiente verde.

O ápice da visita está na sala dedicada às obras do anos 50, que mantém o álbum Thelonious Himself (1957) tocando sem parar, criando um ambiente único para se apreciar masterpieces como Jacqueline aux mains croisées (1954). Não dá vontade de sair dali nunca mais.

“A função deste museu não é servir de mausoléu para um grande homem. Queremos estar abertos ao debate e à reflexão sobre Picasso para reconsiderar sua obra e mostrar sua contínua vitalidade,” disse Debray, a co-curadora.

Celebration Picasso