O rio é gélido e caudaloso, a ponte suspensa é frágil e esburacada. É 1973 e Jen-Hsun, um franzino imigrante taiwanês de 10 anos, faz sua travessia diária a caminho da escola, numa pequena comunidade pobre no interior do Kentucky, onde todos são brancos e americanos nativos, fora ele e seu irmão.

O menino alcança o meio da ponte quando alguns colegas saem de um esconderijo e bloqueiam sua saída; tentar voltar é inútil, pois outro grupo o encurrala covardemente pelo outro lado. Em seguida, se divertem balançando a ponte tentando derrubá-lo na água, enquanto o menino se equilibra para não cair.

Seu pai, um engenheiro de ar condicionado da Carrier, morava a 12 mil quilômetros dali, na Tailândia. Ele havia ficado encantado ao conhecer Nova York numa viagem de trabalho e, imediatamente, decidiu enviar os filhos para uma boarding school que conseguia pagar em busca do sonho americano.

Quando chegou na escola, Jen-Hsun foi colocado para dividir o quarto com um jovem de 17 anos que tinha acabado de sair da prisão e estava se recuperando de sete facadas fruto de uma briga. Também foi encarregado de limpar as privadas. Seu pai não sabia, mas a escola interna barata era, na realidade, um reformatório juvenil, e Jen-Hsun se tornaria imediatamente o alvo predileto de bullying dos internos.

O menino escapou da ponte, esquivou-se do bullying e ainda ensinou matemática ao roommate que, por sua vez, ensinou-lhe a levantar peso — um hábito que levou para a vida e o libertou do corpo mirrado.

Cinco décadas depois, com o nome ocidentalizado de Jensen Huang, o imigrante se tornaria o fundador e CEO da empresa mais valiosa do planeta, superando inimagináveis US$ 4 trilhões de valor de mercado. 

A trajetória entrelaçada e inseparável de Huang e da Nvidia — a empresa que ele criou e se tornou a máquina por trás da revolução da inteligência artificial — são contadas por Stephen Witt no livro A máquina que pensa: Jensen Huang, Nvidia e o microchip mais cobiçado do mundo, que acaba de sair pela Intrínseca. (Compre aqui)

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Witt descreve com precisão jornalística e fluidez narrativa como Huang apostou contra o consenso e subverteu o paradigma de Von Neumann, o gênio húngaro que fugiu de Hitler para os Estados Unidos, concebeu o computador como o conhecemos (ou conhecíamos), em 1945, e ainda teve papel crucial no Projeto Manhattan.

O mérito de Huang? Antecipar, em quase duas décadas, que o futuro da inteligência não estaria nas CPUs (as Unidades Centrais de Processamento, o “cérebro” do computador), mas nos processadores gráficos — as GPUs. Uma pequena troca de letra que teria um impacto profundo na computação e na humanidade.

Em 1802, o poeta inglês William Wordsworth escreveu que “a criança é o pai do homem”. As experiências, emoções e percepções da infância, doces ou amargas, são duradouras, moldam e dão origem ao adulto — um pensamento singelo mas carregado de significado. 

Ao longo da sua trajetória, Huang atravessou muitas pontes balançando – e saiu mais forte. No Denny’s, onde lavava pratos na adolescência, contou ao autor do livro que a infância lhe ensinou o valor do trabalho duro e a suportar desconforto. 

A vida não é sobre o que recebemos, mas sobre o que fazemos com isso. Sem rancor, Huang doou milhões ao antigo reformatório e, em 2020, voltou lá como orador da formatura. A frágil ponte já não existia. 

Depois de alguns anos no internato, os pais de Huang finalmente conseguiram se mudar para os Estados Unidos e se estabeleceram nos arredores de Portland. 

Huang vai para a escola pública, destaca-se em matemática, enturma-se com os nerds sem namoradas, até que se apaixona. Por um computador.

Era um Apple II recém comprado pela universidade, no qual tem sua primeira experiência com programação.

Apesar de possuir notas para entrar numa Ivy League, depois de uma infância turbulenta e instável em três países Huang decide ficar perto de casa. Ingressa no curso de engenharia elétrica da Universidade do Estado do Oregon, a uma hora e meia de sua casa, junto com seu melhor amigo. 

Lá conhece Lori Mills, sua futura esposa. Ainda com uma aparência de adolescente, Huang recorreu a sua capacidade intelectual para seduzir a menina mais cobiçada entre as únicas três — de um total de 250 alunos — que cursavam engenharia elétrica. Viraram parceiros de estudo e a estratégia funcionou: estão juntos até hoje e tiveram dois filhos.

No início da carreira, Huang conheceu o chão de fábrica do design de semicondutores, quando ele ainda existia de fato. Trabalhou como engenheiro na AMD e depois na LSI Logic, onde ganhou experiência prática. 

Nessa época, o projeto dos chips ainda era feito manualmente, em pranchetas, com canetas e folhas de papel transparente sobrepostas. Huang participava desse processo, rabiscando e ajustando rotas de transistores e conexões — um trabalho artesanal, minucioso e repetitivo onde qualquer erro no traço poderia comprometer semanas de trabalho. 

Essa vivência o marcou profundamente, dando-lhe uma compreensão rara da física e da lógica por trás dos semicondutores.

Chris Malachowsky e Curtis Priem se cruzaram na Sun Microsystems que fervilhava com engenheiros obcecados em transformar computadores em máquinas capazes de lidar com gráficos avançados e 3D. A lei de Moore dava sinais de exaustão: uma cena de 3 segundos de um T-Rex correndo em Jurassic Park levou 3 meses para ser renderizada — num supercomputador.

Malachowsky trazia experiência em hardware, e Priem, em arquitetura de chips. Tinham em comum não só o fascínio técnico, mas também a ambição de transformar aquele insight em negócio. Faltava, porém, alguém com visão de negócios. Lembraram então de Jensen Huang, um jovem engenheiro já reconhecido pela disciplina, pela leitura de tendências e pela rara capacidade de transformar complexidade técnica em estratégia.

Huang nunca sonhou em empreender — e disse que jamais empreenderia novamente se soubesse das agruras que teria que passar. Uma confissão rara e honesta sobre o sofrimento, a vulnerabilidade e os desafios brutais de quem monta um negócio.

Nvidia

Após alguma relutância, Huang aceitou liderar a nova empreitada — papel que os sócios não desejavam assumir — deixando para trás a estabilidade de um bom emprego, a contragosto de sua mãe. Com a recomendação de seu antigo chefe na LSI Logic, e mesmo após uma apresentação desastrosa do plano de negócios, o trio conseguiu levantar US$ 2 milhões com a Sequoia Capital e a Sutter Hill Ventures.

A Nvidia foi fundada em 1993, num momento de transição do mercado de PCs para os gráficos 3D. O sucesso de jogos como Doom e Quake impulsionou a demanda por hardware capaz de acelerar os complexos cálculos de renderização.

As CPUs – de arquitetura serial e até então responsáveis por “fazer tudo” – lidavam bem com cálculos variados e complexos, mas não eram eficientes para os cálculos massivos e paralelos necessários aos gráficos 3D. Nesse cenário surgiram as GPUs, projetadas para assumir essa carga e renderizar imagens complexas com processamento paralelo.

Nos primeiros anos, a empresa acumulou fracassos com chips que não conseguiam competir com os melhores do mercado. Faltando pouco para acabar o caixa, Huang e seus sócios decidiram apostar tudo em um projeto radical — o RIVA 128. A diferença não estava apenas na potência do hardware, mas na forma de desenvolvê-lo. 

Quando se está atrás na competição, imitar os líderes não basta — é preciso assumir riscos e buscar um rumo diferente para ter chance de ultrapassá-los: é o paradigma do veleiro.

Enquanto a indústria testava protótipos físicos por meses, a Nvidia arriscou ao validar seu chip apenas em um recém-lançado software simulador e enviá-lo direto à fábrica, antes que o caixa zerasse. O all in deu certo, e o resultado foi avassalador: a empresa colocou no mercado um chip que rodava gráficos 3D com fluidez inédita, deixando os concorrentes para trás. 

A empresa que beirava o colapso saiu do limbo para a liderança em um movimento quase instantâneo. O chip não apenas salvou a Nvidia da morte como abriu  caminho para a cultura de apostas ousadas que se tornaria sua marca registrada — como o frenético ciclo de lançamento de novos hardwares a cada seis meses.

Agora, a Nvidia precisava de um fabricante de primeira linha para os chips que projetava, e o nome óbvio era a gigante taiwanesa TSMC, que sequer retornava os emails que enviavam. A saída de Huang foi tão simples quanto improvável: escrever uma carta. Não para o departamento comercial, não para um gerente, mas direto para Morris Chang, o lendário fundador da TSMC. 

O gesto surpreendeu Chang, que respondeu positivamente — em parte pela ousadia e em parte por reconhecer o potencial de Huang. A TSMC se tornaria não apenas a parceira de manufatura, mas a espinha dorsal da escalabilidade da empresa nos anos seguintes. Até hoje é a única fabricante de todos os chips da Nvidia.

O segundo capítulo da empresa foi genial e, provavelmente, o maior pivot da história empresarial. 

No início dos anos 2000, a descoberta acidental de que uma placa GeForce comum podia acelerar cálculos científicos (com ajuda de alguns hacks) acendeu a ideia de que GPUs poderiam ser mais que brinquedos de gamers

Huang transformou essa faísca no CUDA (Compute Unified Device Architecture), lançado em 2006, um software que converteu a GPU em uma máquina de propósito geral e inaugurou uma nova era da computação.

Era um projeto visionário e mal compreendido — por que complicar uma placa de vídeo usada em games? Por quase cinco anos, o CUDA não parecia ter mercado, dragou as margens da empresa e ficou restrito ao pequeno mercado acadêmico e científico, faminto por volumosos cálculos matemáticos.

Até que em 2012 um breakthrough aconteceu e abriu um novo mundo para a computação. Quando esta porta se abriu, a Nvidia já estava do outro lado esperando.

Dois jovens pesquisadores, Alex Krizhevsky e Ilya Sutskever, usaram GPUs da Nvidia para treinar uma rede neural para participar do ImageNet — uma competição que desafiava algoritmos a reconhecer milhares de categorias em milhões de imagens rotuladas por humanos. O modelo, batizado de Alexnet, teve uma vitória arrasadora e inaugurou o deep learning moderno.

O sucesso provou à ciência a viabilidade das redes neurais e, à Nvidia, que o CUDA era a chave de um novo paradigma. Huang viu ali não só pesquisa, mas um mercado bilionário, e apostou tudo em hardware, software e um ecossistema para treinar redes neurais.

Depois de ensinar as máquinas a enxergar, o próximo passo foi fazê-las compreender a linguagem. Em 2017, um grupo de engenheiros do Google publicou o paper Attention Is All You Need com a proposta de empregar um mecanismo capaz de observar todas as palavras de uma sentença de uma só vez, mapeando conexões sutis entre elas. 

Essa nova arquitetura se encaixou de maneira quase mágica no paralelismo das GPUs. Nascia ali a linhagem dos Large Language Models (como o ChatGPT): a máquina aprendeu a escrever, conversar e, cada vez mais, raciocinar. E a Nvidia, antes fabricante de placas para gamers, tornou-se a base invisível da infraestrutura digital global, central para a era da AI.

Em seu livro, Witt mostra que, além dos êxitos, a Nvidia também é marcada pelo culto à personalidade, o perfeccionismo implacável de Huang — que o impulsiona e o atormenta — e suas explosões de raiva. Essa mistura criou uma cultura rígida e implacável com os erros, que são expostos publicamente como espetáculos pedagógicos.

Curiosamente, o próprio autor do livro experimentou a face mais dura de Huang: em sua última entrevista com o biografado, ao fazer perguntas instigantes sobre o futuro do mundo com a IA, foi fuzilado por uma rajada verbal depreciativa e ofensiva, de vinte minutos, que ele comparou com a experiência a levar um “sermão em tom de quem fala com um adolescente rebelde.”

Apesar dos momentos de fúria lívida, Huang tem  carisma e conta com a lealdade dos funcionários: alguns são bilionários e milhares são milionários — e quase todos seguem trabalhando, um feito impressionante.

Ao fim do livro, Witt mostra Huang refutando os alertas sobre riscos existenciais da AI e defendendo-a como pura força de progresso, a nova Revolução Industrial. A narrativa então flerta com dilemas éticos — lembrando Hannah Arendt, para quem progresso e catástrofe caminham juntos — e deixa ao leitor a inquietação sobre os riscos de acelerar sem freios.

Do menino franzino no Kentucky ao comando da maior potência da computação, Huang sobreviveu a pontes que quase ruíram e crises que quase derrubaram a Nvidia. Aos 62 anos, enfrenta rivais que querem desbancar o chip mais cobiçado do mundo. Mas segue se equilibrando sobre o fio da história.

Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia. Foi co-fundador/sócio do Bondfaro, Buscapé, Mosaico, Gazeus, ParceleX e da Tessera Ventures.