Djanira da Motta Costa, uma das pintoras mais importantes da nossa história, completaria 111 anos na última sexta-feira.

Para comemorar, a galeria Pinakotheke, do Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto Pintora Djanira, acaba de inaugurar uma exposição panorâmica com 50 obras, algumas inéditas. Com curadoria de Max Perlingeiro e Fernanda Lopes, a mostra fica em cartaz até 19 de julho.

Nascida em 1914, em Avaré, São Paulo, de ascendência guarani e austríaca, Djanira da Motta e Silva teve uma infância difícil, marcada pela separação dos pais e o trabalho árduo. A mãe a deixou com o pai no Paraná e voltou para Avaré. O pai, por sua vez, era um dentista itinerante, e deixou a filha morando com os vizinhos por anos. A avó foi buscá-la 14 anos depois. Djanira só estudou até o primário, e atribuía aos anos na lavoura o aprendizado sobre a vida.

“Desde a minha primeira infância nos latifúndios de café, não sei o que seja ociosidade, o denso enigma de se viver sem propósitos. Criança ainda, trabalhando no campo, aprendi a separar os frutos da terra, a selecionar riquezas. Verifiquei, antes de saber o abecê, o quanto vale o amor e o preço da sobrevivência. Aprendi também o valor da dignidade humana, na vida simples que me cercava. E é no meio da gente humilde, nas horas de trabalho, de festas e tradições, que reencontro o melhor de meu sofrido coração,” afirmou Djanira.

Aos 23, teve tuberculose e ficou internada em um sanatório. Sem ter o que fazer, começou a desenhar por brincadeira e descobriu alegria no desenho.

O médico recomendou o ar puro do Rio de Janeiro para sua completa recuperação. Chegando lá, conheceu e se casou com um mecânico da Marinha, que morreu em seguida em um submarino em missão, bombardeado pelo exército alemão durante a Segunda Guerra Mundial.

Viúva aos 25 anos, Djanira foi morar em Santa Teresa. Começou a gerenciar a Pensão Mauá, onde alugava quartos (frequentemente para artistas), cozinhava e mantinha um ateliê de costura. À noite, quando todos iam dormir, transformava a cozinha em estúdio de pintura.

Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), a pintora contou sobre a visita que mudaria sua vida: “Uma moça da Suíça me pediu para lhe fazer um vestido. Quando chegou ao meu ateliê, viu aquela porção de desenhos na parede e perguntou: ‘De quem são?’ Eu disse: ‘São meus’. E ela: ‘Então você é uma artista!’”

Djanira conta que não queria aceitar o título “porque para ser artista é preciso saber muita coisa que eu não sabia. Artista para mim era uma coisa muito sagrada. Não era uma pessoa qualquer que pudesse, de uma hora para a outra, transformar-se em artista.”

A cliente apresentou o amigo Emeric Marcier, um pintor romeno refugiado da guerra que se naturalizara brasileiro. Marcier deu aulas para Djanira, além de conversar e emprestar livros para a jovem pintora, que descobriu naquela época Velázquez, El Grego e Bruegel. Uma nova luz passou a iluminar seu mundo.

Djanira começou a pintar o universo que a cercava: seus animais, o interior de sua casa, os vizinhos. Dizia que “eram estudos de observação amorosa das coisas que eu estimava.”

Na Pensão Mauá, Djanira também teve contato com a vanguarda da arte moderna da época, como Maria Helena Vieira da Silva, Milton Dacosta e Carlos Scliar. 

Em 1945, foi com Milton Dacosta para Nova York, onde acabou ficando dois anos.

Lá, Maria Martins a apresentou a Léger, Miró e Chagall, e Djanira pôde ver de perto a obra de Bruegel, encontrando nela inspiração para seguir a temática popular. Expôs em Nova York com bastante sucesso, o que chamou a atenção de Eleanor Roosevelt, que escreveu um artigo de jornal sobre a brasileira.

Na volta, Djanira resolveu viajar pelo País. Dizia que não podia pintar sem antes ter sentido, vivido. “Uma tela para mim é, às vezes, a vivência de uma viagem, disciplinada no ateliê. Eu não poderia viver sem o alento da terra. Creio que a minha vocação como pintora veio das caminhadas que fazia com meu pai, dentista ambulante, sem pouso certo, de cidade em cidade. Assim também ando eu, cheia de inquietude amorosa pela nossa paisagem e pelo nosso povo,” declarou em entrevista à Revista Manchete em 1963.

Na Bahia, conheceu seu segundo marido, José Motta e Silva. Católica fervorosa, interessava-se por todas as manifestações da fé, da liturgia católica aos ritos afro-brasileiros e mitologias indígenas, o que está presente em destaque em um dos núcleos da mostra no Rio.

Muito amiga do casal Zélia Gattai e Jorge Amado,  projetou o mural Candomblé para a casa deles. Amado a descrevia como uma artista raiz: “(Djanira) é a própria terra, o chão onde crescem as plantações, o terreiro da macumba, as máquinas de fiação, o homem resistindo à miséria. Cada uma de suas telas é um pouco do Brasil.” 

Dividia com Amado o interesse político, o que a aproximou do Partidão e a levou à União Soviética entre 1953 e 1954. A Pinakotheke dedicou um núcleo da exposição para as pinturas do cotidiano dos trabalhadores e as atividades que moldam a vida comum, o que foi influenciado pela expedição russa.

Em 1958, criou o painel monumental de azulejos para a capela do túnel Santa Bárbara, no Rio de Janeiro, hoje no acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Entre muitas exposições e várias retrospectivas, sua mais importante foi no MAM Rio, em 1958, um museu que teve muita importância em sua vida e onde foi velada em 1979.

Em 1964, Djanira foi presa nos primeiros meses da ditadura militar. O episódio teve um profundo impacto e a fez se refugiar com o marido em Paraty. Apaixonada pelo lugar, acabou ficando por 14 anos, afastando-se do mercado e das exposições institucionais, apesar de ter continuado a pintar.

A exposição da Pinakotheke está dividida em cinco núcleos temáticos que representam 40 anos de sua produção artística e de sua vida: Retratos; Religiosidade; Trabalho; Registros do Brasil e, por fim, Aventuras de Procopinho – este, um grupo de desenhos em guache inéditos, feitos pela artista para uma peça infantil de Lúcia Benedetti.

Viajar e pintar são os verbos do seu destino, dizia a pintora.

“Na história da arte brasileira, não há artista que tenha pesquisado de forma tão ampla e profunda o Brasil,” Eduardo Taulois, diretor do Instituto Pintora Djanira, disse ao Brazil Journal. “Ela percorreu o território nacional pesquisando manifestações culturais e religiosas.” 

A exposição da Pinakotheke traz esse panorama de forma completa, incluindo seu processo criativo.

Djanira foi reconhecida desde o começo da carreira como pintora autodidata, mesmo alguns chamando sua arte de primitiva, com linhas e cores simplificadas. Isso nunca a deteve ou lhe fez mudar de estilo.

Durante sua vida, concedeu inúmeras entrevistas e muitos falaram sobre ela publicamente. Artistas e escritores que conviveram com ela a retratam como uma mulher inteligente, trabalhadora, fiel a sua essência e dona de um coração puro.

“Posso ser ingênua, mas minha pintura não,” costumava dizer.

Em uma de suas melhores entrevistas, dada a Clarice Lispector, Djanira disse: “Quando uma pessoa se faz por ela própria é porque tem algo dentro de si que não se acomoda a uma vida comum (…) Apesar de ser um caminho árduo, não deixa de ser também um caminho cheio de encantos e de um sabor de luta. Mesmo a gente não sendo compreendida, existe uma força interior que nos alimenta em todos os reveses. É muito curioso: por que será que a gente luta tanto para poder produzir uma obra de arte?”

 Clarice respondeu: “Acho, Djanira, que é para sobreviver.”

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