Criador do Vampiro de Curitiba e de inúmeras Marias que – prostitutas ou donas de casa – sempre sofrem na mão dos homens, Dalton Trevisan recentemente presenteou seus leitores com uma seleção dos melhores contos que produziu desde que seu nome começou a aparecer em revistas literárias, em meados dos anos 1940.

Dos mais de 700 contos que já publicou, Antologia Pessoal (Record; 448 páginas) compila 94, nos quais o leitor encontra todas as qualidades que fazem do autor um mestre da narrativa breve: a prosa enxuta e vigorosa, a composição de personagens em traços concisos e vívidos, a exploração dos meandros mais obscuros da vida cotidiana.

Em sua longa carreira, Dalton publicou um único romance, A Polaquinha, de 1985. Aos 98 anos, ele é esse raro escritor brasileiro que se consagrou apenas como contista. Desmentindo o preconceito segundo o qual o conto é um gênero menor, o curitibano já deixou a marca de seus dentes afiados na literatura brasileira.

“Desde Novelas Nada Exemplares (1959) até Beijo na Nuca (2014), [Dalton] entregou aos leitores quase um livro a cada dois anos”, contabiliza Augusto Massi, professor de literatura brasileira da USP, no prefácio de Antologia Pessoal.

Nessa vasta obra, Curitiba ergue-se como centro de uma mitologia peculiar, desprovida de deuses e povoada de monstros – dos quais o mais famoso é Nelsinho, personagem que surge no conto-título de O Vampiro de Curitiba (1965) e reaparece esporadicamente nos livros seguintes.

O infeliz vampiro paranaense vive à sombra das raparigas em flor, mas não lhes bebe o sangue. É só um voyeur urbano, que ao mesmo tempo se delicia e se tortura na contemplação de virgens, viúvas e normalistas.

A fama do personagem é tal que ele quase se confunde como o autor: tornou-se comum referir-se a Dalton como “o vampiro”. Homem reservado, que foge de entrevistas, de fotógrafos e badalação – em 2012, quando recebeu a maior distinção literária da língua portuguesa, o Prêmio Camões, sua editora representou-o na cerimônia de entrega –, Dalton faz jus à fama de criatura avessa à luz do sol e dos flashes. Aliás, Rubem Fonseca, outro grande contista nascido, como Dalton, em 1925, também era conhecido por fugir da exposição pública.

As fixações sexuais do Vampiro de Curitiba configuram uma perversão relativamente inofensiva em comparação às taras de outros personagens de Dalton. Sua ficção percorre os subúrbios pobres de Curitiba e visita atrasadas cidadezinhas interioranas para desvelar um mundo bruto e muitas vezes violento, habitado por mães que abandonam os filhos, filhos que desprezam os pais, cafajestes, alcoólatras, ladrões e estupradores.

Essa realidade dura é animada por uma prosa vibrante, única em seus coloquialismo e em sua sintaxe pouco convencional. Do russo Anton Tchekov, um dos escritores de sua admiração, Dalton herdou o talento para armar o palco ficcional em frases sucintas e objetivas, para então deixar os atores se moverem.

Um bom exemplo é Morte na Praça, que em um parágrafo desenha a acanhada cidade em que ação terá lugar e em uma frase resume o caráter errático do protagonista – “Jonas garimpou diamante, foi jogador profissional, matou um homem” –, para então narrar uma história intensa de traição, ciúme e dissolução familiar.

O esclarecedor prefácio de Massi examina com cuidado a evolução da obra de Dalton e situa alguns contos no tempo, mas é de lamentar que a antologia não informe onde e em que data cada texto foi publicado originalmente. Sabemos, porém, que a organização é cronológica, com poucas exceções.

Assim, é possível acompanhar o movimento do autor em direção a formas cada vez mais sintéticas – flagrantes do cotidiano com apenas uma página, como os divertidos Um Minuto, no qual uma adolescente esperta evade-se dos “crentes” que querem lhe falar sobre a Bíblia, e Programa, diálogo entre uma prostituta e seu cliente.

As fixações que atravessam a obra de Dalton são talvez mais significativas e interessantes do que as pequenas experimentações de sua obra tardia. Sua propensão para batizar as mais diferentes personagens de Maria já revela um escritor que não tem medo da repetição. Alguns  elementos menores também são recorrentes – caso da broa de fubá mimoso, que em vários contos aparece como o quitute mais sofisticado que os personagens podem provar.

Há obsessões mais profundas. A agressividade do desejo sexual masculino é um tema recorrente, do qual emerge o subtema do homem idoso que busca mulheres jovens (“Todo velho é sem vergonha”, diz um personagem de O Caso do Desquite). O contista também gosta de examinar personagens em espaços de confinamento: o orfanato (em O Espião, a contundente abertura da antologia), a prisão (A Asa da Ema), o asilo (Dois Velhinhos e Os Velhinhos).

Antologia Pessoal é uma excelente pedida para o iniciante que deseja conhecer Dalton Trevisan e para o admirador que quer revisitar os contos indicados pelo próprio autor como pontos altos de sua obra. E é uma demonstração de que também se faz grande literatura com recortes de vidas pequenas.