Era 1988 quando Philip Roth apareceu sem aviso em Jerusalém para pregar uma ideia extravagante: o “diasporismo”, uma espécie de versão reversa do sionismo. 

Os judeus europeus, teria dito o escritor, deveriam retornar aos países de onde vieram – Polônia, Ucrânia, Alemanha, entre outros – porque, conscientes dos horrores que o antissemitismo produzira no passado, eles os receberiam de braços abertos. A continuidade de Israel como nação judaica cercada de árabes hostis fatalmente levaria a um novo Holocausto.

Alguns jornalistas israelenses deram atenção a esse desvario. Acreditavam que estavam ouvindo a mais poderosa voz da literatura americana. Como não entrevistar o homem que em 1969 escandalizara os Estados Unidos com O Complexo de Portnoy, o hilariante best-seller sobre um advogado judeu que relata proezas masturbatórias e aventuras eróticas a seu psicanalista?

O entrevistado, porém, era na realidade um sósia do escritor famoso – e um farsante. O verdadeiro Roth aproveitaria uma passagem por Jerusalém para confrontar esse impostor.

O que se conta acima é ficção. O leitor de Roth sabe que estamos falando de Operação Shylock, um dos grandes romances que o escritor nos legou em mais de 50 anos de atividade literária (no Brasil, sua obra é publicada pela Companhia das Letras). Quando o livro foi lançado, em 1993, o autor, em um lance promocional, declarou que era tudo verdade, mas é claro que estamos diante de uma engenhosa combinação de fatos reais e imaginários. 

Morto em 2018, aos 85 anos, em consequência de problemas cardíacos, Philip Roth merece ser relido. Aliás, precisa ser relido hoje: Operação Shylock, única de suas obras cuja ação se passa em Israel, ganhou tons ao mesmo tempo sinistros e irônicos diante dos eventos recentes.

Em parte, os delírios do falso Roth parecem ter sido confirmados pelo ataque do Hamas em 7 de outubro. O massacre de israelenses cometido pelo grupo terrorista foi o mais perto que se chegou de um segundo Holocausto: 1400 mortos, em sua maioria judeus. 

De outro lado, a ilusão de que o antissemitismo na Europa teria sido enterrado pelo trauma do nazismo foi refutada pela reação imediata à ação bárbara do Hamas: uma onda global de antissemitismo, com multidões nas ruas de Londres pedindo o fim de Israel, turbas de linchadores do Daguestão buscando judeus no aeroporto e sinagogas depredadas mundo afora.

A sombra do antissemitismo se faz presente ao longo de toda a obra de Roth. Ao mesmo tempo, ele sempre acreditou nos Estados Unidos como um lar imperfeito mas em geral receptivo para sua cultura. 

Roth pertencia a uma geração de judeus que se integraram à vida intelectual americana nos anos turbulentos que vão do macarthismo e da guerra da Coreia aos protestos contra a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate – período que sua literatura retratou em todos os seus dilemas e contradições. 

Filho de um corretor de seguros e uma dona de casa, Roth cresceu nos bairros judaicos de Newark, Nova Jersey, cidade que figura em boa parte da sua ficção. Já com o livro de estreia, Adeus Columbus, de 1959, conheceu a consagração e a controvérsia: tornou-se o mais jovem autor a receber o National Book Award, um dos mais reputados prêmios literários dos Estados Unidos; ao mesmo tempo, enfrentou acusações de antissemitismo por causa de seu retrato humorístico de personagens judeus.

Seu quarto livro (e maior sucesso comercial), O Complexo de Pornoy levantou mais acusações disparatadas de antissemitismo. Adiante, também tentariam colar em Roth a pecha – moralista e redutora – de misógino, devido a sua preferência por heróis masculinos cuja revolta contra as constrições sociais se expressa em uma busca insaciável de sexo.

Abertura da fase mais brilhante da obra de Roth, Operação Shylock foi seguido em 1995 pelo turbilhão criativo e sexual que é O Teatro de Sabbath, reputado pelo próprio autor como sua maior realização. Veio então a chamada “Trilogia Americana” – Pastoral Americana (1997), Casei com um Comunista (1998) e A Marca Humana (2000).

Finalmente, em 2004, veio O Complô contra a América, obra que constrói um passado alternativo no qual o aviador Charles Lindbergh, conhecido antissemita, vence as eleições presidenciais de 1940. Os Estados Unidos teriam assim um simpatizante do nazismo nos anos mais críticos da Segunda Guerra. A sutileza do livro está em mostrar como as políticas antissemitas do governo Lindbergh vão se implantando de forma gradual e sub-reptícia.

Mas A Marca Humana talvez seja a obra de Roth que mais urgentemente precisa ser revisitada. É a história de Coleman Silk, um professor universitário que cai em desgraça por empregar uma palavra proibida em sala de aula: ele pergunta se certos alunos que estavam sempre ausentes seriam spooks, que em português quer dizer fantasma ou assombração, mas que também pode ser uma ofensa racista.

Este é só o ponto de partida de uma história que, publicada 23 anos atrás, prefigura a vigilância censória que hoje rege a esquerda em sua vertente identitária. Autores como o cientista político Yascha Mounk e o historiador Simon Sebag Montefiore dizem que esta linha ideológica está na base das vergonhosas manifestações de apoio ao Hamas vistas em Harvard, Berkeley e outras prestigiosas universidades americanas. 

Como o identitarismo trabalha com as categorias estanques de “oprimido” e “opressor”, argumentam Mounk e Montefiore, o Hamas, um movimento fundamentalista e reacionário, é visto como uma força emancipatória na luta contra o “colonialismo” de Israel. 

Progressista de velha cepa, Philip Roth provavelmente concordaria que certa militância que sempre o tomou como a voz da opressão patriarcal tem sérias tendências antissemitas. 

Mas não precisamos especular sobre o que o escritor de Newark pensaria nos dias de hoje. Sua literatura já diz tudo.