A Netflix acaba de descobrir a insegurança jurídica do Brasil e a imprevisibilidade do nosso sistema tributário – e colocou tudo na vitrine para o mundo ver. 

A gigante do streaming teve seu balanço impactado por uma provisão de US$ 619 milhões que diz respeito a uma disputa tributária no Brasil – uma baixa que chamuscou o lucro da companhia, derrubando a ação apesar dos ótimos resultados operacionais.

O faturamento da Netflix subiu 17% no trimestre para US$ 11,51 bilhões – em linha com o consenso. Mas o lucro por ação ficou em US$ 5,87, abaixo da expectativa de US$ 6,97.

Culpa de uma jabuticaba tributária.

Em uma barreira protecionista travestida de tributo, o Brasil cobra desde 2001 um imposto chamado CIDE-Royalties – também conhecido como CIDE-Tecnologia.

Luís Roberto Barroso

A importação de serviços e tecnologias fica sujeita a um pagamento de 10% sobre a remessa no pagamento. O tributo foi criado para, pretensamente, favorecer a tecnologia nacional. Na prática, tem sido um obstáculo histórico ao desenvolvimento das empresas no País, porque encarece a absorção de tecnologia de ponta.

O que isso teria a ver com a Netflix?

Em 2022, a empresa ganhou uma causa que a dispensava do pagamento da CIDE, uma vez que não era uma remessa relativa à transferência de tecnologia. Mas um caso envolvendo a Scania, julgado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, reviu esse entendimento e criou uma nova jurisprudência.

A disputa remonta a janeiro de 2002. A fabricante de caminhões entrou com um mandado de segurança questionando o pagamento da CIDE e sobre as remessas feitas à matriz na Suécia relacionadas a um contrato de compartilhamento de custos de um projeto de pesquisa e desenvolvimento (P&D).

Vinte e três (23) anos e alguns meses depois…

Em uma votação apertada no dia 13 de agosto, o STF declarou a constitucionalidade da cobrança ampla da CIDE e em remessas de empresas para o exterior. O resultado foi de 6 a 5, com o voto de Minerva sendo proferido pelo então presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.

No julgamento, os ministros decidiram que a contribuição pode incidir sobre qualquer tipo de contrato – como serviços administrativos e direitos autorais – e não apenas sobre a importação de tecnologia estrangeira. Se o STF fizesse a interpretação mais restrita, a Fazenda estimou que poderia perder – ou melhor, deixar de arrecadar – R$ 4 bilhões ao ano.

“As empresas mais valiosas do mundo são as empresas de tecnologia. A riqueza passou da propriedade física para a intelectual. É a área que o País mais precisa investir,” disse Barroso. “Não veria com simpatia a redução do espectro dessa legislação.”

A tese vencedora, de aplicação ampla da contribuição, foi apresentada por Flávio Dino. Juristas que acompanham o caso disseram que a decisão surpreendeu. Alguns ministros teriam mudado de lado, em meio às recentes represálias do Governo Trump contra juízes do Supremo.

Dias antes do julgamento, Gilmar Mendes declarou que “independência tecnológica rima com soberania” – e que “é preciso que se desenvolva tecnologia para que não sejamos dependentes de modelos dominantes.”

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Ficou parecendo que Gilmar acha que o Brasil  vai desenvolver tecnologia cobrando mais este imposto.

Saiu derrotado o relator do caso, Luiz Fux, segundo o qual a contribuição deveria se restringir à transferência de tecnologia, e não a contratos relativos a despesas como direitos autorais.

“Se admitida a cobrança de CIDE e de qualquer contribuinte, sem observância da referibilidade, ainda que indireta, o que teríamos seria imposto com destinação específica, o que é, no geral, inadmissível pelo texto Constitucional”, disse Lux, de acordo com o relato do site Jota.

Com a decisão, deverá haver um efeito cascata sobre o resultado de outras empresas.

A Netflix é apenas o primeiro caso a vir à tona. A empresa já registrava em seus balanços o risco de perdas em decorrência dessa disputa tributária, mas classificava o risco como baixo. Por isso não acreditava que haveria impacto em seu guidance.

Não foi o que ocorreu, e a ação desabou 7% no after hours de ontem, após a divulgação do balanço. Hoje o papel mergulha 10% – eliminando em boa parte a forte valorização no ano, que agora acumula alta de 26%.

Spence Neumann, o CFO da empresa, tentou explicar o Brasil aos analistas e investidores.

“Não se trata de um imposto específico da Netflix. Nem mesmo é específico do streaming,” disse na teleconferência. “Nenhum outro imposto se parece ou se comporta dessa forma em qualquer outro país em que operamos. É o custo de fazer negócios no Brasil.”

Segundo relatório do Itaú, a ampliação da base do imposto foi um evento one-off. Mas em breve a carga poderá ficar ainda mais pesada.

“Há um projeto de lei em votação para tributar plataformas de streaming (de 3% a 6% do faturamento), além de exigências de mais conteúdo nacional,” escreveu Stephano Gabriel, um analista de tech do banco. “Será importante investigar se há outras empresas que possam ser impactadas por essa questão.”

O advogado Daniel Szelbracikowski, sócio do escritório Dias de Souza, que defende a Scania, disse ao Brazil Journal que vai recorrer da decisão do STF. Vai ingressar ainda hoje com embargos de declaração.

O Supremo vinha entendendo que ao menos uma ‘referibilidade indireta’ seria necessária para ocasionar a cobrança. Agora isso ruiu.

“Este precedente representa uma ruptura com a jurisprudência do próprio Supremo em matéria de contribuições, que exigia ao menos uma referibilidade indireta,” disse o advogado. “É um precedente que interfere com todo o sistema tributário nacional. Ele compromete gravemente toda a coerência do sistema tributário nacional, porque fixa balizas que, na prática, transformam a contribuição em um imposto.”

A Constituição define a distinção entre imposto, taxa e contribuição.

No imposto, o fato gerador não precisa ter nenhuma atuação estatal específica. A taxa é um tributo que exige a prestação de algum serviço, como a taxa do lixo ou a taxa para emissão de passaporte.

Já a contribuição, como a CIDE e, não exige uma contraprestação direta específica, mas requer alguma referibilidade com o fato gerador. Além disso, o destino da arrecadação tem fins específicos.

“Quando o Supremo vem e diz que a contribuição pode ser cobrada de qualquer um sobre qualquer coisa, ele transforma a contribuição em imposto,” disse Szelbracikowski. “Ao fazer isso, ele ofende toda a estrutura do sistema tributário nacional – inclusive no pacto federativo de distribuição de receitas, porque o imposto é repartido por todos os entes federativos.”

Outro problema é que os recursos arrecadados com a CIDE-Tecnologia não vêm sendo aplicados na área de sua destinação. Os contribuintes estão pagando, mas o dinheiro não chega onde deveria ir.

O prejuízo para a economia, contudo, vai muito além, algo que os ministros talvez não tenham notado.

Abaixo, alguns exemplos de como a CIDE vai onerar, daqui para frente, os contratos de remessas internacionais – e até mesmo para empresas não diretamente relacionadas ao setor de tecnologia.

Se a Globo quiser transmitir o Oscar, vai pagar os 10% adicionais.

Se uma startup de biotecnologia usar serviços de nuvem de uma Big Tech, vai pagar os 10%.

Se uma empresa que vai fazer IPO nos EUA contratar consultores e advogados lá fora, vai pagar os 10%.

Se uma empresa de mídia brasileira contrata conteúdo de um produtor fora do País, vai pagar os 10%.

Se a GOL mandar seu avião fazer manutenção nos EUA, vai pagar os 10%.

Para uma fonte que acompanha casos parecidos, “o Supremo quis dar uma f%@! nas Big Techs, mas acabou prejudicando o produtor de conteúdo brasileiro, o cara que precisa contratar serviços de fora para poder inovar, e todo mundo que precisa de serviços numa economia que hoje é 100% globalizada.”