O sol acabara de raiar e nossa equipe já percorria as estradas de chão perpendiculares à BR 354, no sul de Minas. De prancheta na mão, os entrevistadores batiam de porta em porta para preencher um questionário com mais de 20 itens. 

“Alguém na sua casa tem alguma doença grave, que necessite de remoção especial?”, era uma das perguntas.

Mapeamos também as grávidas.  Ao todo, eram 18 que poderiam entrar em trabalho de parto no dia da competição — o Primeiro Circuito Grampér, a empresa que meu sócio José Renato Ponte e eu fundamos para unir nossa paixão pelo pedal com a oportunidade de mercado. 

O levantamento levou quase um mês para ser concluído, realizado num universo de aproximadamente 5 mil pessoas que compõem a comunidade lindeira dos municípios de São Lourenço, Caxambu e Pouso Alto, na região conhecida como Circuito das Águas.  (Pra quem não sabe, “comunidade lindeira” são as pessoas que moram em propriedades rurais próximas às estradas.)

Não era uma ação de assistência social. Era só uma das 36 medidas do nosso protocolo operacional, para garantir a segurança dos ciclistas e de toda a população dos três municípios.

O ciclismo amador é um esporte em franca ascensão em vários países. De acordo com uma pesquisa da consultoria Lucintel, o setor deve movimentar cerca de US$ 35 bilhões em todo o mundo este ano. 

No Brasil, o número de competições tem se intensificado, atraindo até as franquias internacionais. 

Para organizar a Grampér, uma empresa brasileira, foram dois anos de planejamento até o dia da prova, em junho desse ano. Não era para menos. Precisávamos fechar uma estrada federal, outra estadual e três municípios — um percurso de 120 quilômetros — por seis horas. Nos mais de cem anos desde sua construção, a BR 354 jamais havia sido fechada. 

Escolhemos São Lourenço, Caxambu e Pouso Alto devido à ampla rede de hotéis disponível na região. 

Contudo, as estradas que conectam as três cidades são estreitas, montanhosas e com muito tráfego. Desse modo, só havia uma forma de fazer uma prova segura: fechar totalmente as pistas. 

Para garantir o bloqueio das vias, tivemos que adotar uma série de medidas. Criamos uma “equipe de mobilização social” para levar informações sobre o fechamento das estradas e identificamos as pessoas com necessidades especiais.

Com a ajuda da Polícia Rodoviária Federal, determinamos rotas alternativas e desviamos todos os ônibus que passariam pela região no horário da competição — sem deixar ninguém esperando no ponto. 

Colocamos carros e motos de som semanas antes da corrida para rodar as cidades, pedindo à população que deixasse os veículos em casa e fosse torcer pelos atletas. 

Na semana anterior à prova, contabilizamos 447 pessoas que estariam mobilizadas durante a competição, entre policiais, médicos, servidores de diversos órgãos públicos, nossa equipe e staffs contratados. Quase 80 veículos, incluindo ônibus e viaturas, distribuiriam a “tropa” pelo percurso. 

Passamos e repassamos o planejamento diversas vezes. Parecia tudo certo até que alguém… 

“Ai meu Deus, e o trem?”  

Sim, havia um trem vindo em nossa direção, isto é, um trem que cruzaria o percurso exatamente durante a prova. Faltando cinco dias para a largada, o administrador de uma maria fumaça do século XIX, que leva turistas de São Lourenço a uma cidade vizinha, nos informou que não iria alterar o horário de partida da composição conforme havia sido combinado. Foram muitas horas de papo, e até os prefeitos tiveram que atuar para convencê-lo a postergar a partida da locomotiva.

No final, não tivemos um acidente sequer durante a competição, que atraiu competidores de todo o país.

O tamanho do esforço que empregamos condiz com o crescimento do ciclismo, que em países como a Colômbia já atrai uma audiência nas transmissões de TV maior do que a do futebol. Sem falar que o Tour de France é o maior evento esportivo anual do mundo, com uma audiência de 3,5 bilhões de pessoas todos os anos. 

O Brasil ainda está muito longe dessa realidade, mas nosso sonho na Grampér é encurtar essa distância. 

Temos que trabalhar muito — e o maquinista precisa ajudar um pouquinho.

 

Leonardo Souza é fundador da Grampér.