Hoje com 83 anos, a apresentadora de televisão e empresária Martha Stewart aprendeu desde cedo o que mais tarde se tornaria regra entre as celebridades: o potencial mercadológico de sua vida pessoal.
Martha tinha marido, filha, casa com jardim, talento para a cozinha e habilidade para os negócios – uma personagem “perfeita” que servia de role model para muita gente, principalmente as mulheres nos EUA.
O documentário Martha, recém-lançado pela Netflix, destrincha a biografia da menina pobre que ficou bilionária e sua resiliência para surfar grandes ondas e se reerguer de quedas que enterrariam muita gente.
A mais surpreendente delas foi em 2004, quando a “rainha do lar da televisão” passou cinco meses na cadeia depois de ser condenada por usar informações privilegiadas na Bolsa para evitar um prejuízo financeiro.
Totalmente calcado na voz de Martha, o filme é um grande depoimento da protagonista com imagens de arquivo e falas em off de familiares, amigos ou pessoas de convivência profissional.
Como um roteiro de folhetim que se estende por quase duas horas, a ascensão e queda da personagem são narradas para que ninguém deixe de admirá-la, e o desfecho segue a fórmula que Martha pregou ao longo da vida e que é tão valorizada nos Estados Unidos: “faça você mesmo”.
Martha Helen Kostyra nasceu em uma família pobre de Nutley, Nova Jersey.
Era a preferida do pai, um homem consciente de que vivia aquém do seu potencial, e se surpreendia com a determinação da mãe, que, além de trabalhar como professora, preparava dezesseis refeições por dia para alimentar o marido e os seis filhos. Na adolescência, Martha ganhava 50 centavos por hora como babá; mais tarde, levada por uma vizinha, faturava até US$ 15/hora como modelo e começou a ficar conhecida.
Aos 20 anos, casada com o advogado e editor Andrew Stewart e com a filha Alexis nos braços, Martha entendeu que não poderia ser apenas uma dona de casa.
A ex-modelo trabalhou como corretora de bolsa em Walt Street e, no começo dos anos 70, abriu um serviço de catering para organizar jantares e coquetéis em residências, empresas e instituições culturais.
Educar, informar, inspirar: era o que Martha queria fazer pelas mulheres comuns. Tudo seu era perfeito, dos sabores até a apresentação dos pratos. Os negócios cresceram, Martha virou marca de roupa de cama e utensílios domésticos, estreou na televisão e lançou uma revista feminina (a primeira de tantas com sua marca), que sumia das bancas como pão saído do forno.
Na virada da década de 70 para a de 80, a maioria das mulheres dizia que seu objetivo não era ser dona de casa. Quase todas queriam trabalhar, mas não tinham como desfocar do lar, e faziam malabarismos para equilibrar as múltiplas tarefas. Martha entendeu o espírito do seu tempo e “vendia” que era possível dar conta de tudo. Era admirada por representar a imagem da perfeição – algo que, no futuro, se voltaria contra ela.
Depois de 27 anos, o casamento com Stewart acabou. O fim do conto de fadas, porém, não abalava a protagonista, então com 45 anos, porque as mulheres de sua geração já experimentavam ou invejavam a autonomia sentimental.
Nos anos 90, Martha vivia seu apogeu à frente de um império multimídia quando se tornou alvo de críticas da imprensa e do mercado financeiro. Alguns falavam que ela frustrava os telespectadores porque ninguém alcançaria tamanha plenitude em tarefas domésticas. Houve quem denunciasse desvios de caráter ou assédios morais em relação aos mais próximos.
Todo mundo queria ver a “perfeitinha” na sarjeta. Em 2001, Martha vendeu ações de uma empresa de biotecnologia pouco antes de o valor destes títulos despencarem. Os programas de televisão foram cancelados, os anunciantes desapareceram, e depois de cinco meses na cadeia, talvez nem Martha acreditasse que sairia do buraco.
Mas como uma fênix, ela estava novamente no ar em 2005. Martha Stewart abandonou a aura de deusa, renovou a imagem nas redes sociais e se aproximou de astros como Justin Bieber e o rapper Snoop Dogg, que ampliaram o seu fã-clube. Ao explorar suas inegáveis imperfeições, revelou-se humana e aprendeu a acertar baseada nos próprios defeitos.
Ao assistir ao documentário de R. J. Cutler, a apresentadora fez reclamações, que vão desde abordagens do roteiro até a falta de cuidado com o seu visual na tela. A insatisfação soa estranha, porque o filme é um permanente elogio à sua capacidade de superação.
Não há entrevistas agressivas e os pontos negativos da sua personalidade tampouco são esmiuçados. Martha, o filme, a apresenta como uma heroína independente do seu tempo e resultou quase afetivo, um sentimento que a própria Martha admite desconhecer.