Opulência, exuberância e turbulência são as características da ‘Trumpulência’ – o termo cunhado pelo economista e cientista político Marcos Troyjo.
Para Troyjo – que foi secretário de Comércio Exterior no Governo Bolsonaro e presidente do Novo Banco de Desenvolvimento – a decisão de impor tarifas de 50% contra as exportações brasileiras não foi apenas uma decisão política, sem nenhuma estratégia comercial por trás.
“Que ninguém se engane: existe uma motivação econômica muito grande nessas medidas de Trump,” ele disse nesta entrevista ao Brazil Journal.
Troyjo vê “inércia e incompetência na mensuração de riscos para a economia brasileira” por parte do Governo, que não manteve canais de negociação com a equipe de Trump – ao contrário do que fizeram todos os países do G20, incluindo China e Índia, parceiros do Brasil nos BRICS.
Na conversa, o analista comenta como o País ainda pode colher benefícios da Trumpulência – além de quais ações deveriam ser tomadas para reduzir danos e atravessar a ‘Guerra Fria 2.0.’
Quais as características da ‘Trumpulência’ e como ela pode atingir o Brasil – para o mal, como parece ser o caso agora, e eventualmente para o bem?
Trump tem um estilo mercurial. Suas reações variam muito, o que acrescenta incerteza nas relações. Veja o que aconteceu com Elon Musk.
Precisamos acrescentar a isso o aspecto da opulência americana para entendermos a Trumpulência. Os EUA estão num ótimo momento econômico, com as ações em sua máxima histórica. As três maiores empresas americanas valem mais que a Bolsa de Paris.
Quando terminou o segundo governo Lula, o PIB nominal dos EUA, em dólares, era seis vezes o do Brasil. Agora o PIB americano é 12 vezes o brasileiro.
O que isso significa? Se a economia americana vai para um lado que favoreça o Brasil, os efeitos podem ser muito positivos para nós.
Te dou um exemplo. Nesses primeiros movimentos da guerra comercial, os americanos retaliaram a China, e os chineses passaram a restringir as compras americanas de milho, soja, sorgo, carne bovina, carne suína e carne de frango.
Foi um efeito positivo para as exportações do Brasil. Outro aspecto é que há muitas restrições nos EUA e na Europa ao investimento estrangeiro chinês. Aquilo que poderia ir para Europa ou EUA pode ser absorvido pelo Brasil.
Então há efeitos da ‘Trumpulência’ que podem ser favoráveis ao Brasil.
Na primeira rodada de tarifas, em abril, o Brasil foi relativamente poupado, correto?
Sim. O Brasil, por ser um dos pouquíssimos países do mundo que tem superávit comercial com a China mas que tem déficit comercial com os EUA, teve um alíquota de 10%.
Ora, se você tem 10%, ao passo que países como Tailândia, Malásia e Vietnã, assim como uma série de outros países, têm tarifas mais elevadas, haveria condições para aumentar não apenas a competitividade das nossas exportações industriais, como também gerar um efeito de substituição a esses bens que vinham sendo até agora produzidos naquela região do mundo.
Poderia ter sido um extraordinário vento de cauda para um dos objetivos brasileiros, que é se reindustrializar.
Me parece que esse diferencial competitivo que o Brasil tinha, a partir do 2 de abril, vai acabar se perdendo.
Teremos uma alíquota sobre as nossas vendas para os EUA superior ao que é o patamar agora das vendas chinesas, que representam o maior contencioso na guerra comercial dos americanos.
E por que o Brasil se tornou o alvo da maior tarifa imposta até agora por Trump?
Da mesma maneira que em um acidente aéreo, em geral você tem uma combinação desafortunada de fatores.
No primeiro Governo Trump, quando eu era o secretário de Comércio, havia uma empatia entre o Presidente Trump e o Presidente Bolsonaro. Mas os negociadores eram duríssimos, estavam interessados em obter acesso às empresas americanas. Eram muito orientados a resultados comerciais.
Tanto que um dos nossos objetivos era diversificar o leque de associações do Brasil. O País tinha a possibilidade de ser o único do mundo a ter, ao mesmo tempo, cadeira no G20, nos BRICS e na OCDE – uma organização muito importante, porque ela estrutura, por exemplo, novas regras para o comércio internacional e o fluxo de investimento.
Depois da grande crise de 2008, muitos fundos de investimento de natureza institucional passaram a só permitir aos seus gestores alocar recursos para determinados países que abracem as normas da OCDE. Fazendo parte da organização, o Brasil teria acesso a um estoque de recursos que hoje não está disponível.
Aliás, veja a coincidência. Em 2020, recebemos uma carta dos EUA dando apoio à entrada do Brasil na OCDE. Seis anos mais tarde, o Presidente da República recebeu uma carta impondo tarifas de 50% em nossas exportações.
Houve uma deterioração muito grande na relação entre os países.
A decisão de Trump foi política, sem lógica econômica, como tem afirmado a maior parte dos analistas?
O pano de fundo tem muito de economia.
Os negociadores americanos entendem que existe uma distância muito grande entre a tarifa média cobrada pelo Brasil para exportações americanas e a tarifa média cobrada pelos EUA nas exportações brasileiras. Existe ainda a questão das barreiras não-tarifárias, além das críticas brasileiras às empresas americanas de tecnologia.
Então, que ninguém se engane: existe um substrato econômico, uma motivação comercial e econômica muito grande nessas medidas de Trump.
Dizem que o efeito para a economia brasileiro será pequeno. Mas parecem não levar em conta um cálculo mais amplo, considerando a dinâmica de investimentos.
O Brasil nos últimos quatro anos se tornou um dos três principais destinos de investimento estrangeiro direto. E a principal origem de investimento estrangeiro direto no Brasil são as empresas americanas.
O Brasil não se preparou para essa decisão de Trump?
Do dia 20 de janeiro até agora, todas as economias do G20 tiveram engajamento com negociadores comerciais dos EUA. Todas. Índia, Japão, Alemanha, França, Reino Unido. Representantes de Trump e Xi Jinping mantiveram diversas conversas.
Todos os líderes desses países fizeram gestos, se mostraram abertos a construir acordos. A única exceção foi o Brasil.
Acho que o Presidente Lula e o Presidente Trump nunca apertaram a mão – e estamos prestes a completar seis meses de presidência Trump.
O Brasil imaginou que Trump estivesse blefando? Ou foi uma opção deliberada de não abrir um canal de negociação?
Inércia e incompetência na mensuração de riscos para a economia brasileira.
Em vez de tratar a questão com matemática e interesse nacional, entraram no jogo com viés ideológico. Transbordou-se para o campo econômico comercial a polarização política interna.
Parecem imaginar que, se tiver um problema qualquer com os EUA, é possível apertar um botão e criar um efeito de diversificação.
Mais uma vez, foi uma combinação de fatores que foram contribuindo para o que aconteceu agora.
Voltando um pouco no passado, o presidente Lula, durante a campanha do ano passado, manifestou-se favorável à candidatura de Kamala Harris. Depois fez comentários sobre a ameaça à democracia que Trump representava.
Há um acervo de declarações que podem ser entendidas como uma agressão pelo Governo americano. Num determinado momento essa pressão estoura.
Outro ponto pouco lembrado é que, pela primeira vez em sua história de quase 250 anos, os EUA têm um secretário de Estado de origem latino-americana – que, além do mais, ocupa a função de National Security Advisor.
Hoje, ambas essas funções estão sendo exercidas pela mesma pessoa, que é o Marco Rubio.
É um sujeito com experiência legislativa, no Senado, com muita exposição à América Latina, com toda essa trajetória da política anti-Castro, anti-Revolução Cubana, com os olhos muito sensíveis ao que acontece na Venezuela, na Nicarágua, na Argentina. Portanto, tem especial sensibilidade para aquilo que está acontecendo no Brasil.
Então há claro o elemento político, que torna as coisas mais complexas. Há agora muita atenção naquilo que acontece na América Latina.
Há conversas de bastidores para distender as tensões no relacionamento?
Não tenho notícia, o que é preocupante.
Se pegarmos estados como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o grande destino das exportações de maior valor agregado são os EUA.
Em breve poderemos ver empresas reduzindo a atividade e fazendo demissões. Vão colocar o que for possível nos containers e desembarcar antes de 1º de agosto. Ou, se não for possível, vão puxar o freio de mão. Essas decisões estão acontecendo neste momento.
O que poderia ser feito pelo País, como estratégia de contenção de danos e superação desse conflito?
Onde temos mais chances é na busca de alianças com os compradores americanos, porque eles também serão afetados. Imagine empresas de madeira, de mobiliário. Não é simples substituir esses fornecedores.
Parece que, neste momento, os negociadores americanos estão muito mais sensíveis às repercussões negativas desse tipo, de impacto interno, do que às gestões de governos estrangeiros.
Então é muito importante costurar alianças com os compradores, para que essa mensagem se faça chegar de maneira consistente às instâncias decisórias. Porque os compradores americanos também estão preocupados.
Será necessário também fazer chegar aos americanos a mensagem de que essa é uma situação que talvez tenha efeitos negativos do ponto de vista político, ao empurrar o Brasil para mais perto de competidores dos EUA.
E precisamos continuar diversificando mercados, fazer novos acordos com outras regiões do mundo, particularmente com a Ásia. A expectativa é que tenhamos uma força adicional para formalizar o acordo com a União Europeia, algo bastante importante.
Mas em relação aos EUA, o espaço que se tem por parte dos americanos para diminuir essa tensão é pequeno. Existe muito pouca vontade de ambos os governos.
Se houver nos próximos dias e semanas um aquecimento da retórica, isso vai acabar de alguma forma ou de outra afetando os investimentos em ativos brasileiros. Poderá aumentar o sentimento negativo de gestores americanos de outros países em relação a alocações no mercado brasileiro.
Vê algum espaço para o Brasil fazer algum tipo de retaliação estratégica, focada em algum setor específico? Foi o que fizeram os chineses, usando por exemplo o acesso dos americanos às terras raras?
O Brasil não dispõe dessa possibilidade.
Os americanos compram 12% do PIB deles no resto do mundo. Como hoje o PIB nominal é de cerca de US$ 30 trilhões, eles importam US$ 3,6 trilhões – ou seja, a economia americana importa uma França por ano.
Desses US$ 3,6 trilhões, o Brasil vende US$ 41 bilhões – 1,1%.
Eu resumo, não temos o poder de barganha que os chineses possuem.
Analistas estão olhando para o que aconteceu no Canadá, no México, na França – sempre quando esse ou aquele chefe de governo adotou uma postura mais antagônica ao Trump, isso rendeu capital político interno, dividendos políticos internos.
Pode ser, mas isso será muito ruim para o Brasil e para a economia brasileira. Do ponto de vista da economia, a melhor coisa é o esfriamento – fazer esse assunto desaparecer das manchetes, negociar nos bastidores.
O momento em que o Brasil mais cresceu nos últimos cem anos foi durante a Guerra Fria. Naquele momento o Brasil jogou entre os dois blocos.
É algo que precisamos fazer agora. Os países que têm mais chances de navegar nessa Guerra Fria 2.0 são aqueles que vão conseguir extrair benefícios de ambos os blocos.
Os sauditas estão fazendo isso. Singapura está fazendo isso. E os indianos estão fazendo isso com muita tranquilidade. Até mesmo a Argentina.
A política precisa evitar atritos, não entrar em brigas em que não fomos chamados – e, ao mesmo tempo, resguardar o principal interesse nacional, que é fazer a renda do brasileiro crescer.
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