No último fim de semana, cariocas e simpatizantes tomaram as redes sociais para comentar, surpresos e indignados, a matéria assinada por David Segal, com mais duas colaboradoras, no New York Times. Os três falaram sobre a falta de sabor do Biscoito Globo — o biscoito-ícone das praias cariocas — e sua relação com a (supostamente pobre) culinária da cidade.
O link da matéria me foi enviado por amigos que vivem na Califórnia (uma delas, chef), perguntando se eu conhecia o autor. Tive de ler o texto duas vezes para entender a razão do ataque, gratuito e descabido, a uma marca que gera renda para tanta gente, incluindo um senhor de 90 anos que certa vez conheci na praia do Leblon, andando quilômetros na areia para ganhar seu dinheirinho. Quanto ao sabor, gosto não se discute (mas sabe-se que Biscoito Globo desce melhor com um bom Matte Leão).
Fiquei pasma ao ver que o dono, funcionários e vendedores do Biscoito Globo abriram seu tempo e espaço para o jornal, posaram para fotos, mostraram a fábrica, falaram de cifras, sem saber que a matéria detonaria o produto. Que traição.
Durante as Olimpíadas e outros eventos globais, os jornais querem matérias que explorem as peculiaridades da cidade-sede: os hábitos das pessoas e o clima do lugar. Para muitos leitores, o que acontece fora das arenas pode ser mais curioso do que os recordes mundiais.
Sem saber o idioma local, correspondentes e enviados especiais contam com a ajuda de ‘fixers’: pessoas locais que sugerem pautas, marcam entrevistas e resolvem todos os pepinos. Os editores, sentados do outro lado do globo, recebem idéias o tempo todo e, por desconhecer a cultura do país em questão, às vezes acertam e às vezes erram ao aceitar uma pauta.
O Biscoito Globo tem gosto de polvilho e de infância. E a culinária do Rio nada tem a ver com restaurantes cinco estrelas do Guia Michelin. O repórter citou, sim, as casas de suco, as churrascarias e o mate. Mas por que não descreveu estes lugares? Por que não foi descobrir o que, de fato, agrada o carioca? O açaí com granola, o suco de laranja com acerola, o milho na praia. O pão-de-queijo. A comida árabe. O chopp no Jobi. No Bracarense. O petit gâteau de doce de leite com sorvete de tapioca do Gula Gula. Ele deixou de fora tanta coisa, incluindo o aplicativo “Menu for Tourist”, criado especialmente para as Olimpíadas, que traduz cardápios de mais de 600 restaurantes do Rio para nove idiomas.
Repórteres precisam ter um olhar para o outro, e entender a alma do negócio, ou do país, antes de sentar para escrever. Ninguém vem pro Rio atrás de comida francesa (desculpe, Claude). É preciso fazer o dever de casa. Os leitores só levam em conta o quão difícil é cavar e escrever uma reportagem justa e balanceada quando alguém não o faz. Escrever uma matéria leva horas, dias, dezenas de telefonemas e uma boa edição.
Sou uma orgulhosa assinante do New York Times desde a época em que era acordada com o tijolo da edição dominical sendo jogado na minha porta às cinco da manhã. Como jornalista, já entrevistei diversos mestres que escrevem lá (incluindo a Ruth Reichl, musa da gastronomia), e fui a palestras de tantos outros (incluindo o Mark Bittman, que fala de comida como ninguém). Já tive a honra, inclusive, de publicar um texto no jornal, e acompanho de perto o trabalho (excelente) dos correspondentes que vivem no Brasil.
Por isso, quero acreditar que este episódio foi uma gafe gigante, de um editor ocupado que aceitou uma pauta de um estrangeiro que caiu no Rio de paraquedas e, aparentemente, com um pouco de mau humor – ele também já escreveu sobre a forma ‘triste’ como o hino americano está sendo tocado e sobre as filas nos estádios. Mas falar do Biscoito Globo de dentro da fábrica foi pior do que colocar o dedo no formigueiro – foi sentar em cima dele.
Tania Menai é (adivinha?) carioca e trabalha como correspondente e escritora em Nova York. É autora do livro Nova York do Oiapoque ao Chuí. Está no Rio durante as Olimpíadas junto a uma equipe de jornalistas britânicos de uma agência internacional, e jura que eles não vivem mais sem um bom açaí.