Por mais de uma década, o Cash App foi o “Pix” dos jovens e desbancarizados nos EUA, um símbolo da economia das ruas e do dinheiro que circula sem passar por bancos.

Mas este ano, gastando mais de US$ 1 bilhão em marketing, a Block Inc, sua controladora, quer reescrever esse enredo: transformar um app de transferências em um ícone cultural capaz de transitar com a mesma naturalidade entre Atlanta e West Hollywood, entre torneios de basquete e passarelas, entre rimas de rap e trailers de cinema. E, no processo, disputar a principalidade no coração financeiro dos americanos.

Quando um produto já se parece com todos os outros na prateleira e o nicho já não basta para crescer, a diferença vem da narrativa, e aí entra Timothée Chalamet: o ator que nos últimos dois anos rendeu US$ 1,1 bilhão em bilheteria sem vestir uma capa de super-herói; namorado de uma das Kardashians; rosto preferido da Gen Z no TikTok; presença cativa no front row dos Knicks. O pacote A-list completo de 2025. 

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Talvez você não conheça Chalamet, mas, se tem filhos entre 12 e 25 anos, eles com certeza conhecem. No Brasil, ele já é mais buscado no Google que Rodrigo Santoro.

O trono de símbolo aspiracional sempre precisa de herdeiros, e Hollywood produz alguns a cada geração. Brad Pitt e Madonna já não têm o mesmo frescor ou alcance, e marcas que querem parecer eternas precisam se renovar.

Do peer-to-peer à cultura pop

O Cash App nasceu em 2013, criado pela Block Inc. – a antiga Square, fundada por Jack Dorsey, o pai do Twitter. 

Surgiu como um jeito rápido e gratuito de transferir dinheiro peer-to-peer, na era dos apps, pós-BlackBerry, em que Snapchat e Instagram explodiam.

Se no Brasil o Pix domina, nos EUA o jogo é disputado por Zelle, Venmo, InterPay e Cash App. Cada um tem seu território; o Cash App conquistou o seu virando sinônimo de “mandar dinheiro para um amigo”, especialmente entre adolescentes e comunidades com pouco ou nenhum acesso a bancos.

Hoje são 57 milhões de usuários ativos, mais de US$ 282 bilhões movimentados por ano e uma controladora que vale US$ 48 bilhões na Bolsa, recém-incluída no S&P500.

A monetização vem de tarifas sobre um ecossistema que inclui saque instantâneo, cartão de débito personalizado, compra e venda de ações e bitcoin, declaração de impostos e empréstimos pessoais, um cardápio completo para quem começou com um único botão: “enviar dinheiro”.

Mas o Cash App não ficou restrito à funcionalidade: ele entrou para a cultura pop.

Citado em mais de 200 músicas de hip-hop, é presença constante em videoclipes e no vocabulário de influenciadores. Parcerias com Travis Scott, Cardi B e Megan Thee Stallion, somadas a patrocínios de torneios de basquete e eventos de rap, solidificaram sua identidade como marca da cultura negra americana, com epicentro em Atlanta.

E ousadia nunca foi exceção: em uma campanha com A$AP Rocky (o rapper marido de Rihanna), a empresa distribuiu US$ 1 milhão entre fãs via P2P, a intencionalidade calculada para alimentar uma ambição que sempre foi maior que o próprio aplicativo.

Do nicho ao mainstream

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Com as ações da Block caindo quase 50% nos últimos cinco anos e praticamente de lado em 2025, Jack Dorsey sabe que ainda há muito valor inexplorado na base de usuários do Cash App, uma penetração entre os jovens que a maioria dos grandes bancos americanos nem sonha em ter.

Em 2024, o app faturou US$ 16,25 bilhões, mas segue distante do valor por cliente que gigantes como o JP Morgan Chase conseguem extrair. Para mudar de patamar, Dorsey precisava de uma peça-chave: uma licença bancária. Foram anos de tentativas frustradas e um investimento estimado em centenas de milhões de dólares até conseguir o aval em Utah. Agora, o Cash App não está mais limitado a transferências P2P; tem o direito de disputar o posto de conta principal (primary bank) na vida do cliente.

O caminho para isso é um roteiro clássico: primeiro, conquistar usuários com gratuidade; depois, vender produtos e serviços de margem mais alta. A Block não esconde o plano: quer alcançar famílias com renda de até US$ 150 mil por ano e transformar o “app da quebrada” em conta oficial no imaginário aspiracional americano.

O ‘quiet branding’ entra em cena

Só este ano a Block já investiu mais de US$ 1,1 bilhão em marketing, 12% a mais que em 2024. Parte foi para a campanha “Cash In”, lançada em março e dirigida por Ramy Youssef (premiado em Ramy, da Hulu), com outdoors em endereços de moda como o SoHo e o Miami Design District. A escolha desses hotspots – e não das periferias – já indicava a mudança de alvo.

Mas o ponto alto veio em julho.

Sem teasers e sem posts no Instagram, um curta estrelado por Timothée Chalamet começou a aparecer antes dos novos Superman e Quarteto Fantástico. Na tela: uma mercearia retrô iluminada em tons quentes, clientes pagando com barras de ouro e conchas raras, metáforas para métodos antiquados. Chalamet, claro, é o agente da mudança, e o Cash App, a solução silenciosa, a estética “discreta”, e nenhum apelo de venda direta.

Do lado de fora, o mesmo código visual: outdoors premium no SoHo e em Tribeca apenas com o rosto de Chalamet e o logo do app. Sem slogan. Sem call-to-action. Um gesto herdado do manual da Apple. Não é convencer, é fazer querer pertencer.

Considerando compra de mídia em blockbusters, o fee de Chalamet, a direção de Youssef e billboards premium, a conta chega fácil aos US$ 50 milhões. (Para efeito de comparação, o Telegraph reportou que a Chanel pagou US$ 35 milhões ao ator para promover o Bleu de Chanel em 2024. Ter o Chalamet não é barato.)

No quiet branding, você não vende, você conquista. É a sedução silenciosa que troca o “compre agora” pelo “você quer estar aqui”. E quando funciona, o valor de mercado cresce antes mesmo do produto mudar.

Para o Cash App, é o custo de entrar no mesmo campo aspiracional que Nike, Apple ou Louis Vuitton cultivam há décadas, sem perder a base que o tornou relevante. Afinal, status vende. E no setor financeiro, ser cool é um atalho a ser usado.

Se der certo, vai do rap de Atlanta ao casal de West Hollywood que acabou de ver Dune 3. Se não, volta a reinar nos mesmos círculos de antes. Porque reposicionar não é só trocar o logotipo: é reescrever quem você é na cabeça das pessoas. E no mundo das marcas, a narrativa vale tanto quanto o produto.

Kaio Philipe é o CMO da Inter&Co.