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Ao longo de séculos, a ideia das Olimpíadas tem sido celebrar o esporte como o ápice dos valores mais nobres da sociedade: a dedicação por uma causa, a disciplina em prol do resultado, o respeito pelo competidor e a harmonia entre os povos.

Mas no Brasil, a vaia da torcida em alguns jogos — a antítese de tudo isso — tornou-se tema de um debate apaixonado:  vaiar é legítimo? eis a questão.

Na rede americana ESPN, o comentário essa semana era de que “o país com o menor número de medalhas de ouro de todos os países-sede da história moderna está vaiando arqueiros, ginastas e esgrimistas.”

No caso mais emblemático, o francês Renaud Lavillenie (segundo vários relatos, não exatamente um docinho) foi vaiado pelo público na prova de salto com vara quando competia com o brasileiro Thiago Braz pelo título. O francês perdeu e botou a culpa na torcida brasileira, a qual mal comparou aos nazistas que hostilizaram o campeão Jesse Owens 80 anos atrás…

Horas depois, foi hostilizado na entrega das medalhas e chegou a chorar durante o hasteamento das bandeiras.

O presidente do COI, Thomas Bach, sentenciou: “Chocante o comportamento do público vaiando Renaud Lavillenie no pódio. Inaceitável numa Olimpíada.”

Onde estamos com a cabeça?

Será que o ímpeto por trás das vaias é o mesmo pensamento que faz muitos brasileiros acharem que o sucesso do outro é condenável?

Seria o mesmo espírito que faz com que tenhamos simpatia pelo perdedor (“aquele injustiçado”) e olhemos de lado para o vencedor (“aquele grande fdp…”), enquanto, em outros países, o sucesso é visto como a recompensa lógica do esforço?

Talvez a nossa vaia tenha a ver com o espírito selvagem de uma economia idem. Por décadas, fomos criados no caldo da inflação e da desordem financeira, lutando por um mínimo de previsibilidade; depois, quando conquistamos a estabilidade, esta se mostrou frágil e temporária, sucumbindo ao Grande Desarranjo Dilmista; e agora estamos aí, a cara suja de poeira, tentando nos levantar, catando os cacos de nossa autoderrota — nossa incapacidade de fazer o sistema político funcionar a favor do povo, nossa frustração com termos posto a perder os avanços tão duramente conquistados, enfim: nosso pavor em ver que o mundo gira, e a lusitana brasileira mal sai do lugar.

Seria esta a vaia de um povo assustado, inseguro, momentaneamente incapaz de ser generoso, de mostrar a altivez que exaltamos em nosso próprio hino?

Como toda generalização é burra, há exemplos fartos de uma torcida brasileira magnânima. Michael Phelps (um vencedor) e Novak Djokovic (um derrotado nesta Olimpíada) ambos elogiaram a torcida.  E, claro, o grande contra-exemplo se deu na Copa: os aplausos, de pé, à seleção alemã depois do 7×1 no Mineirão. Destruída em campo, a alma do brasileiro encontrou forças pra dar uma demonstração sobre-humana de civilidade. 

Há, no entanto, uma outra escola de pensamento na ‘vaiologia’ : aquela que diz que a vaia é um fenômeno cultural. Ainda nos anos 80, um executivo do vôlei que viajava para assistir campeonatos na Europa dizia a esta coluna como as coisas eram diferentes por lá: a torcida aplaudia o adversário quando este marcava um ponto, reconhecendo seu talento.

No Brasil, reza essa escola, a gente gosta mesmo é de aplicar pressão, a torcida no estádio é sempre o “jogador a mais” no time, e a vaia, portanto, seria um instrumento legítimo.

 
“O único grande esporte brasileiro é o futebol, e no futebol isso é permitido,”  diz um torcedor-gestor que jura que o quadro das vaias não é tão grave, e que o brasileiro “está aplaudindo no final, exceto quando o cara é um otário.”

Márvio dos Anjos, editor de esportes do Globo, lembra a definição de um outro francês, Boileau, sobre a vaia: “C’est un droit qu’à la porte on achète en entrant”  (“Trata-se de um direito que compramos na porta, ao entrar.”) 

Um amigo do Brazil Journal — a favor do direito à vaia — prefere citar Nelson Rodrigues:  “No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio.”

 
O brasileiro consegue ser perverso na vaia, mesmo fora de campo.

 
Em 2002, Cafu foi penta com a seleção e virou ídolo;  na Copa seguinte perdeu e passou a ser olhado na rua como “marginal”

 
“Uma vez eu estava num jogo da França (quando morava na Europa) e sentou um cara do meu lado que centenas de pessoas começaram a aplaudir,” diz um empresário. “Perguntei quem era, e ele era um ex-jogador da seleção que nunca tinha sido um grande campeão. Essa memoria curta a gente tem até na hora de votar e reeleger um Maluf da vida.”
“Vamos lembrar da seleção de 1994 ou 2002: no Brasil, gratidão ou manutenção de um ídolo não existe, isso é uma piada. Aqui, ou o cara tem um carisma fora do comum, tipo o Guga, ou tá f… quando perder ou se aposentar.”

Se a tese ‘vaia é cultura’ estiver certa, ainda assim isso sugere a pergunta:  “Que cultura é essa?”

Não se trata de falar mal do brasileiro como um povo (ainda mais num momento em que outros fazem isso por nós), mas de se perguntar se não podemos ser melhores do que nos sabemos.

 
 
Foto: Inovafoto/Fotos Públicas (17/08/2016)