Quis o destino que o embaixador Sergio Danese assumisse a presidência do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas pouco antes dos atentados do Hamas contra Israel, em 7 de outubro.

Arredio a holofotes e defensor ferrenho da diplomacia como o melhor caminho para solucionar conflitos, Danese ainda estava elaborando seu programa de trabalho quando o tempo fechou no Oriente Médio.

IMG 1622Antes do dia 7, a prioridade era o Haiti, onde uma população miserável sofre com a escalada da violência promovida por gangues. O plano era aprovar uma resolução autorizando o envio de uma força multinacional ao Haiti. (A força multinacional é diferente das forças de paz; enquanto estas são organizadas e lideradas por países a serviço da ONU, a outra envolve a participação de várias nações; neste caso, o Conselho apenas estabelece os parâmetros da atuação da força — a resolução foi finalmente aprovada ontem.)

Os ataques do Hamas mudaram a agenda de Danese e da ONU. O embaixador brasileiro, com 43 anos de carreira, não esperou nem 24 horas para convocar uma reunião do Conselho de Segurança, presidido neste momento pelo Brasil.

Nos dia seguintes ao atentado, a ONU sofreu forte pressão para se pronunciar sobre os atentados do Hamas. Danese usou o tempo para fazer consultas aos representantes dos 15 países integrantes do Conselho e, assim, tentar chegar a um consenso mínimo.

Depois de sete dias — e seguindo as orientações do governo brasileiro nesse tema — Danese conseguiu elaborar uma resolução ampla, cujo foco imediato era lançar negociações para um cessar-fogo, além de exigir a libertação imediata dos reféns e a criação de corredores humanitários destinados à retirada de civis da Faixa de Gaza.

Fazendo referência a resoluções anteriores, a proposta também contemplava o tema da criação do Estado da Palestina, nó górdio dos conflitos no Oriente Médio. Os dez membros não permanentes do Conselho de Segurança aprovaram a resolução, prova de que a proposta brasileira conseguiu formar um consenso. Dois dos cinco membros permanentes (França e China)  também a aprovaram, e dois se abstiveram (Reino Unido e Rússia). Os Estados Unidos, porém, exerceram seu direito de veto, um privilégio concedido apenas às nações com assento permanente no Conselho.

O Brasil, que durante as gestões de Dilma Rousseff (2011-2016) e Jair Bolsonaro (2019-2022) viveu seu ocaso na cena internacional, está assumindo um papel de liderança nas negociações internacionais, favorecido pelo fato de presidir o Conselho de Segurança neste momento e de ter diálogo com todas as nações.

Nesta entrevista ao Brazil Journal, Danese explica por que o Brasil ainda não classifica o Hamas como um grupo terrorista. “Do ponto de vista brasileiro e jurídico, não temos como qualificar o grupo [Hamas] como terrorista porque ele não foi designado dessa forma por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. É preciso deixar isso claro, mas nós qualificamos, sim, os atentados como atos terroristas. Esta é uma distinção que precisa ser feita. É uma questão puramente jurídica, não é juízo de valor.”

Abaixo, os principais trechos da conversa.


Estando à frente do Conselho de Segurança da ONU neste momento, como o sr. analisa o recrudescimento dos conflitos entre Israel e países árabes no Oriente Médio?

Este é o conflito mais antigo desde a fundação da ONU. Perdura desde 1948. Houve momentos em que se chegou mais próximo a algum tipo de encaminhamento e houve momentos muito graves — uma guerra em 1948, outra na década de 1950 [a “Guerra de Suez”, em 1956], a “Guerra dos Seis Dias”, em 1967, a “Guerra do Yom Kippur”, em 1973. Depois, houve vários momentos de tensão e de conflito. Ao mesmo tempo, durante muitos períodos houve processos de paz que pareciam encaminhar as coisas em certa direção e tinham a vantagem de conter as partes e evitar o agravamento de situações.

A que momentos o sr. se refere?

Chegou-se a resultados, por exemplo, com os “Acordos de Camp David”, assinados em 1978 e 1979 entre Israel e Egito, intermediados pelo então presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter (1977-1981). Mais adiante, foram firmados outros acordos, entre os quais, o que ficou conhecido como o “Acordo de Oslo” [também intermediado pelos EUA e que resultou, em 1993, no reconhecimento, pela Palestina, do estado de Israel e, pelo lado dos israelenses, da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) como representante oficial do povo palestino nas negociações bilaterais]. Com altos e baixos, esse processo avançou, mas, depois, acabou sendo abandonado. É um conflito que periodicamente ressurge com mais força e com episódios de enfrentamento.

O ataque do Hamas no dia 7 de outubro não foi uma surpresa para a comunidade internacional?

A surpresa foi, talvez, a intensidade com que se produziram os ataques. A reação de Israel também surpreendeu pela intensidade. Mas não é uma surpresa esse tipo de ressurgimento ou de escalada do conflito porque, como mencionei, este é o conflito mais antigo do do pós-Guerra. É uma dessas poucas questões que nunca foram resolvidas plenamente pela diplomacia mundial.

Na sua opinião, uma vez que, desde 1948, foram assinados vários acordos de paz, qual é o elemento que tornou os tratados incompletos?

Acho que o que originou o conflito foi a forma como, naquele momento, na criação do estado de Israel, em 1948, não se criou ao mesmo tempo o estado da Palestina.

E por que o estado palestino não foi criado na ocasião?

Aí, é uma questão de interpretação histórica, sobre qual teria sido a razão, eu prefiro não entrar nesse tipo de discussão.

Como o sr. vê o veto dos EUA à resolução proposta pelo Brasil, que previa a negociação de um cessar-fogo imediato, além de uma série de outros objetivos?

É preciso entender a questão de uma forma mais didática. O Brasil assumiu, pela 11ª vez, um assento não-permanente no Conselho de Segurança da ONU. Depois do Japão, é o país que mais vezes integrou o Conselho entre os membros não-permanentes da entidade. É, portanto, a nação em desenvolvimento que mais esteve no Conselho de Segurança na condição de membro eleito. Isso faz com que, em geral, ocupe a presidência duas vezes durante o seu mandato. A explosão desse conflito já antigo entre Israel e Palestina ocorreu durante a nossa presidência. Obviamente, não estava prevista. E nós tínhamos um programa de trabalho muito intenso, com várias questões trazidas periodicamente ao Conselho.

Quais, por exemplo?

A questão mais aguda deste momento é a do Haiti. Foi aprovada dentro da nossa presidência a resolução que autorizou o envio de uma força multinacional àquele país. Não se trata de uma força da ONU, mas, sim, multinacional, autorizada pelo Conselho de Segurança, que esclarece os parâmetros de atuação dos países envolvidos num caso como esse. Há os temas que escolhemos, os que decaem tradicionalmente em outubro ou por sua periodicidade etc. E há outros que apareceram ou que voltarão a aparecer.

Que tema deve reaparecer?

Alguma coisa de Coreia do Norte poderá surgir. Respondendo, então, à sua pergunta sobre a resolução: o conflito eclodiu de forma imprevista no Oriente Médio, então, o nosso papel foi o de rapidamente assumir o que a presidência tem que fazer neste momento.

O quê, exatamente?

Fazer com que o Conselho trate do tema. Fizemos isso imediatamente. Chamamos uma reunião de emergência para consultas no dia seguinte ao dos atentados. Durante toda a semana fizemos consultas. Havia um interesse grande dos membros para que o Conselho se pronunciasse de alguma forma, mas, o órgão é muito dividido, como se sabe, e tem posições muito divergentes. Durante a primeira semana, fizemos inúmeras consultas e, finalmente, conseguimos realizar uma segunda reunião da entidade. O Brasil, então, foi chamado a apresentar um projeto, a assumir uma liderança nesse assunto.

Como a resolução foi elaborada? O senhor ouviu os outros membros?

O projeto que apresentamos foi elaborado com base em muitas consultas a outros países, claro, com aqueles que estavam interessados. Nem todos se engajaram. Havia um texto russo que foi formulado sem a realização de consultas. Por insistência da Rússia, esse texto foi levado à votação no dia 16, mas não foi aprovado. Fizemos mais consultas para preparar nosso texto e o levamos à votação no dia 17. Chegamos à conclusão de que a nossa proposta era a que tinha maior condição de angariar apoio. No fim, de fato, tivemos apoio de 12 dos 15 membros do Conselho. Os dez países eleitos nos apoiaram, além de dois membros permanentes (China e França). Reino Unido e Rússia se abstiveram, mas os EUA vetaram.

Na sua avaliação, qual foi a razão do veto?

Por uma avaliação que eles fizeram, e eles têm a responsabilidade deles, decidiram vetar o texto sob o argumento, ou pelo menos esse foi o motivo explícito, de que o presidente [Joe Biden] estava viajando pela região [dos conflitos], então, eles teriam preferido esperar o resultado dessa viagem. Nossa opinião era diferente.

De que forma?

Nós achávamos que uma resolução do Conselho ajudaria aqueles que estivessem no Oriente Médio tentando, de alguma forma, se engajar na busca de uma solução. Inclusive, o próprio secretário-geral da ONU [António Guterres] estava lá ao mesmo tempo em que o presidente americano. Isso poderia ajudar nas tratativas para, primeiro, conseguir a cessação de hostilidades, se fosse possível, e segundo, talvez, mais importante e mais imediato até, a libertação dos reféns e a abertura de corredores humanitários.

E, agora, o que o senhor fará, já que a resolução foi vetada?

Retomamos imediatamente as consultas para ver aquilo que é possível fazer. Insistir nisso é muito importante. Para o multilateralismo, para as Nações Unidas, é crucial que o Conselho de Segurança se pronuncie sobre uma situação tão grave e aguda, dadas a intensidade e a extensão do conflito. Esta é a nossa posição e vamos continuar a trabalhar nesse sentido.

Por que a resolução proposta pela Rússia foi rejeitada?

Era uma proposta basicamente de natureza humanitária, mas não atendia aos interesses de vários países de tratar mais firmemente da natureza dos atentados cometidos e de alguns outros aspectos.

Quais?

A proposta russa, sobretudo, não lançou mão de uma prática recorrente na ONU que é recordar resoluções anteriores que trataram do conflito, mencionar a questão dos dois estados etc. Havia méritos e nós incorporamos boa parte do que tinha naquela resolução, com a ideia de criar um consenso. As resoluções jamais conseguirão atender aos interesses de todos os países envolvidos, isso precisa ser entendido. Temos que buscar o equilíbrio, o consenso, o apoio do maior número possível de países. Tivemos êxito com a nossa resolução porque, afinal, foram 12 votos, quatro quintos do Conselho.

Críticos do cessar-fogo alegam que não se pode negociar com um grupo terrorista. Negociação se faz entre estados.

Do ponto de vista brasileiro e jurídico, não temos como qualificar o grupo [Hamas] como terrorista porque ele não foi designado dessa forma por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. É preciso deixar isso claro, mas nós qualificamos, sim, os atentados como atos terroristas. Esta é uma distinção que precisa ser feita. É uma questão puramente jurídica, não é juízo de valor.

Como é possível fazer essa distinção?

Quando o Conselho de Segurança propõe um cessar-fogo, uma pausa humanitária, o que se quer é tentar mostrar que o objetivo aqui é puramente humanitário. Não é uma questão de interferir [na disputa política] nem propriamente de determinar o completo fim do conflito, não há como fazer isso. A nossa motivação era dar ênfase para que a população civil da faixa de Gaza não fosse penalizada e tivesse acesso à ajuda humanitária. O outro ponto muito importante é a libertação imediata e incondicional dos reféns que estão em poder do Hamas.

O Hamas matou e sequestrou civis em Israel, portanto, cometeu atos terroristas, como diz a resolução proposta pelo Brasil. Um dos artigos de seu estatuto diz que o grupo tem como objetivo exterminar o povo judeu.

Há declarações unilaterais [de países-membros do Conselho de Segurança] sobre a natureza do movimento político [do Hamas], considerando-o uma entidade terrorista ao lado de muitas outras. No caso das Nações Unidas, algumas são qualificadas como terroristas, esta [o Hamas] não está entre elas. Nós seguimos o preceito que se deve seguir nesse caso.

Qual?

O que é mandatório é o que é decidido pelas Nações Unidas. Como não há essa decisão, não temos a base jurídica para fazer isso. Essas coisas têm consequências práticas.

Que tipo de consequência?

Jurídica, por exemplo. Quando uma entidade é classificada como sendo terrorista, os países têm que congelar seus bens, ativos etc. Se um país faz isso em relação a um grupo não classificado pelo Conselho de Segurança como terrorista, isso pode ter implicações judiciais. O importante aqui é que tanto o Brasil quanto a resolução que nós patrocinamos qualificam claramente os atos ocorridos no dia 7 de outubro como atos terroristas.

Como não se trata de um país e sim de um grupo, a contra-ofensiva de Israel está vitimando civis inocentes – até o momento teriam morrido cerca de 2.670 palestinos e 1.400 israelenses. Do ponto de vista da ONU, Israel tem o direito de fazer isso?

Existem várias normas do Direito Internacional e do Direito Internacional Humanitário que dizem como os países podem reagir a uma situação como essa. Há critérios de proporcionalidade e de discricionariedade. Os parâmetros mostram que é preciso ter certos cuidados para não provocar, na reação a eventos como o de 7 de outubro, um dano colateral enorme.

Qual é o próximo passo do Conselho para lidar com o conflito? O sr. vai convocar nova reunião? No fim de semana, o chanceler brasileiro Mauro Vieira criticou a paralisia da ONU.

Estamos fazendo consultas. Dependendo dessas consultas, tomaremos alguma iniciativa. Certamente algum país nos pedirá que sejam feitas consultas específicas, informais, sobre o tema. O ideal seria que pudéssemos ter uma resolução que mostrasse uma posição a mais consensual possível ou que pelo menos não fosse vetada. A tendência é que tenhamos algo próximo daquela que já aprovamos na semana passada.

Já existe alguma sinalização dos EUA quanto à discussão de uma nova resolução?

Por enquanto, não. É prematuro falar sobre qualquer coisa. Da nossa parte, há muitas consultas em curso.

O chanceler Mauro Vieira participou de cúpula no Cairo, no domingo, e ontem participou de reunião do Conselho. Ao fim, disse que há consenso sobre vários aspectos de um novo processo de paz no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, pediu ao Hamas que liberte reféns e a Israel que suspenda ataques à Faixa de Gaza. Qual é o papel do chanceler, uma vez que o senhor preside o Conselho?

Ele é o chanceler. Durante a presidência do Conselho, espera-se que os países se engajem no mais alto nível possível, e isso já estava previsto desde antes do início da nossa presidência – o chanceler viria aqui para presidir algumas sessões. Ocorreu o conflito, portanto, mais uma razão para ele estar aqui e tentar ajudar por causa do nível dele. Isso facilita o processo decisório para nós aqui, na linha de frente, na trincheira.