Beth Carvalho era conhecida nos meios musicais pelo epíteto de “madrinha”.
Não era por menos: em mais de cinco décadas de carreira, ela deu voz a compositores de várias gerações, sempre ligados ao universo do samba.
Beth cantou de Cartola e Nelson Cavaquinho ao vibrante pagode do Cacique de Ramos (de onde saíram, entre outros, o grupo Fundo de Quintal e os compositores Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho), além do Quinteto em Branco e Preto, uma jovem banda de cantores e instrumentistas talentosos de São Paulo, entre muitos outros.
Mais que uma admiração, ela sempre reservou ao gênero um tratamento de nobreza: defendia sua importância e lutava pelos direitos dos autores com a fúria de uma leoa.
Essa Beth apaixonada – e acima de tudo politizada – surge em toda sua grandeza no documentário Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, de Pedro Bronz, em cartaz nos cinemas.
São mais de 800 horas de registros pessoais da cantora que Bronz condensou em uma hora e cinquenta e dois minutos. Sinceramente? Passam voando.
“Mas isso aqui é uma sinfonia”, diz ela, durante a audição de Juízo Final, obra-prima de Nelson Cavaquinho.
A carioca Elizabeth Santos Leal de Carvalho nasceu em 1946 num meio simpático às artes. Estudou violão e balé na infância, e seu pai a levava para as rodas de samba. Foi ele, aliás, quem causou um impacto na carreira da cantora ao lhe mostrar o disco de estreia de João Gilberto, de 1958.
“Percebi que cantar não é só empostar a voz,” Beth comenta no documentário. Passou a frequentar as reuniões da turma da bossa nova, mas logo a abandonou por achar “muito elitista”. Seu habitat passou a ser as rodas de samba.
O material filmado e compilado pela própria Beth vale ouro. “Minha casa virou um arquivo,” brinca a sambista em dado momento do filme.
Há conversas com Nelson Cavaquinho e Cartola nas quais eles mostram novas composições. Este último, aliás, exibe As Rosas Não Falam e O Mundo é um Moinho, que considera “lenta demais” para a sambista cantar (mas não era, como mostrou em Nos Botequins da Vida, álbum que lançou em 1977).
Na segunda metade dos anos 70, Beth se apaixonou pelo pagode (tradução: festa) que corria solto no Cacique de Ramos, no Rio. Dali nasceu sua associação com os sambistas do Fundo de Quintal e agregados, que renderia alguns dos principais discos de sua carreira – além de sucessos como Coisinha do Pai.
Num dos melhores momentos do documentário, uma jornalista pergunta a Beth sobre sua aproximação com a “zona norte” do Rio (a periferia). “Não existe essa coisa de zona norte ou zona sul,” dispara a sambista.
Em 2010, Beth sofreu uma fissura no sacro, o osso localizado na base da coluna vertebral. Perdeu a mobilidade e passou a se apresentar deitada – o que, no documentário, faz com que ela brinque dizendo que as pessoas verão “Na Cama com Beth.” As complicações decorrentes da fissura acabaram por levá-la à morte, de infecção generalizada, em abril de 2019.
Beth Carvalho era uma democrata. Participou do comício pelas diretas em 1984, onde cantou Virada, de Noca da Portela, uma letra com forte conteúdo social. Tinha pela esquerda a mesma paixão que tinha pelo Botafogo. Andança traz um encontro dela com Fidel Castro; o ditador cubano pede que ela autografe uma nota de um real, alegando que esta valeria bem mais graças à sua assinatura. Dona de um temperamento forte, sabia como ser justa na hora certa.
Em determinado momento do documentário, ela discute com o maestro Ivan Paulo (1937-2018) por causa da concepção dos arranjos de um álbum. Tempos depois ele lê, emocionado, uma dedicatória de Beth elogiando o seu trabalho.
Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho é um retrato e tanto da madrinha do samba.