Secretário-executivo do Ministério da Fazenda por mais de seis anos, Bernard Appy conhece como poucos a colcha de retalhos, conveniências e incongruências que o Brasil chama de sistema tributário.
Appy é um dos fundadores do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e um dos autores do texto que serviu de base para a PEC 45/2019, a proposta de reforma tributária com amplo apoio na Câmara.
A PEC 45 prevê a unificação de PIS, Cofins e IPI (federais) com o ICMS (estadual) e o ISS (municipal) num único tributo de valor adicionado chamado IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). O Ministério da Economia, no entanto, está inclinado a propor algo mais modesto: um IVA que unifique apenas os impostos federais: PIS, Cofins e IPI.
Nesta conversa com o Brazil Journal, Appy critica a proposta do governo e afirma que uma ampla reforma tributária, que inclua também ICMS e ISS, pode ser a diferença entre o Brasil quebrar ou ter uma trajetória sustentável da dívida pública. Segundo Appy, desde a Constituição de 1988, nunca houve um clima político tão favorável à aprovação de uma ampla reforma tributária quanto agora, tanto no Congresso quanto nos Estados.
Ele cita um estudo do economista Bráulio Borges, da LCA Consultores, que estima um acréscimo no PIB potencial de 20 pontos percentuais, somente considerando os efeitos diretos da reforma tributária, num horizonte de 15 anos. “Estamos falando de R$ 1,5 trilhão a mais na riqueza do país.”
Appy também não concorda com a ideia do Ministério da Economia de ressuscitar a CPMF, por ser um imposto de pouca transparência e que represa a liquidez na economia.
A PEC 45 prevê a unificação de PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS num único imposto de valor agregado. Estados e municípios vão aceitar?
Do ponto de vista dos Estados, hoje há apoio unânime dos secretários de Fazenda dos 27 Estados à reforma tributária nos moldes da PEC 45, isto é, unificando os tributos federais, estaduais e municipais, sem nenhum benefício fiscal, cobrado no destino e com arrecadação centralizada. Então, do ponto de vista dos Estados, claramente há um apoio à proposta. Existe uma resistência dos grandes municípios, que estão propondo manter o ISS no nível municipal. Esse é um tema que terá de ser discutido no Congresso Nacional. Agora, é impossível ter um bom IVA, um bom imposto sobre o valor adicionado, separando mercadorias e serviços. É impossível.
Pela PEC 45, o contribuinte vê um imposto só, mas os entes da federação têm margem para calibrar a alíquota de sua parcela dentro do IBS. Sendo assim, por que os grandes municípios estão resistentes à unificação dos tributos?
Quais são as estimativas de aumento do PIB potencial com a reforma tributária?
Há um estudo recém divulgado do economista Bráulio Borges que estima, com a aprovação da PEC 45, considerando apenas os efeitos diretos, uma elevação do PIB potencial brasileiro em 20 pontos percentuais em 15 anos. O que significa um aumento da renda de cada brasileiro em 20 pontos percentuais. Borges estimou também o impacto indireto, que viria de uma trajetória mais sustentável da dívida pública, da redução do risco país e das taxas de juros. Quando você incorpora esse impacto indireto, esse efeito sobe para 33 pontos percentuais em 15 anos.
Em números absolutos, estamos falando em quantos bilhões a mais na riqueza do país?
Considerando o PIB hoje em torno de R$ 7,5 trilhões, estamos falando em R$ 1,5 trilhão a mais em 15 anos. Sendo que um terço disso é tributação, ou seja, dá R$ uns 500 bilhões a mais de receita para os entes da federação. Esse ponto é muito importante para a discussão da reforma tributária.
Se os Estados estão a favor da unificação, porque a proposta do governo hoje reuniria somente os tributos federais, deixando ISS e ICMS de fora?
Fazer um IVA dos tributos federais não é ruim. O problema é que isso resolveria uma parcela muito pequena do sistema tributário atual. Se for feita uma reforma somente dos tributos federais, serão resolvidos somente uns 15% das distorções dos tributos indiretos do Brasil. O que significa que, em vez de ter um aumento de 20 pontos percentuais do PIB potencial do Brasil, esse aumento seria de três pontos percentuais.
Por que, em sua opinião, o governo insiste em uma reforma restrita?
Honestamente, não sei o motivo de o governo não querer fazer uma reforma ampla. Quando a discussão for retomada, o que deve acontecer logo, e o governo entender que existe um clima favorável para uma reforma ampla, acredito que será a favor.
Após o estrago da pandemia sobre as contas públicas, o quanto a reforma tributária se torna mais necessária?
Uma das consequências da pandemia foi um aumento muito grande da dívida pública. É fundamental que você tenha uma indicação de solvência da dívida pública no longo prazo. Existem três formas de garantir a trajetória sustentável da dívida pública.
Ou seja, é possível dizer que uma reforma tributária ampla pode ser a diferença entre a solvência ou a débâcle do Brasil?
Isso. A reforma tributária pode ser a diferença entre a solvência e a insolvência do setor público brasileiro. Exatamente. Como falei anteriormente, uma ampla reforma tributária pode representar um aumento de vinte pontos percentuais no PIB potencial do país.
Um ponto crítico da reforma tributária é acabar ou não com o IPI. Sabe-se que o governo cogita não extinguir o IPI na Zona Franca de Manaus. Faz sentido uma reforma tributária que mantenha o IPI na Zona Franca?
Não, não faz sentido manter o IPI somente na Zona Franca. É preciso extinguir o IPI, é um imposto totalmente distorcivo, foge de qualquer padrão de um bom imposto sobre o valor adicionado. A questão da Zona Franca terá de ser resolvida com outros instrumentos. Podem ser créditos presumidos dentro do novo imposto, pode ser alocação de recursos dentro do fundo de desenvolvimento regional. Idealmente é preciso ter um modelo que possa explorar as potencialidades da Amazônia. Atualmente, há um modelo pelo qual você tenta levar para a Amazônia empresas que não tem a menor vocação para a região. Pode ter um custo num primeiro momento, mas no longo prazo pode se tornar sustentável. O modelo atual da Zona Franca existe há 50 anos e não se mostrou sustentável. Se você tirar os benefícios fiscais, a Zona Franca quebra, perde todas as empresas imediatamente.
Primeiro, o pior imposto do Brasil não é o IPI. O pior imposto do Brasil é o ICMS. Provavelmente, o ICMS é o pior imposto do mundo.
Por causa da guerra fiscal, da quantidade monumental de exceções em cada um dos Estados, por causa da substituição tributária. Pelas distorções que gera, do ponto de vista do contribuinte, claramente é o pior imposto do Brasil hoje. Mas o IPI é um imposto muito ruim também. O IPI é muito ruim porque incide somente sobre produtos industriais. Um bom imposto sobre valor adicionado tem que incidir sobre uma base ampla e ir até o consumidor final. O IPI incide só sobre uma base e vai até a saída da indústria. Só por isso já gera um grande contencioso [desentendimento com a Receita Federal]. Se uma empresa tem a indústria e um centro de distribuição, ela tende a colocar margem maior no centro de distribuição e menor na indústria. Segundo, um bom IVA é uniforme, tem alíquota uniforme sobre todos os bens e serviços. O IPI tem uma quantidade monumental de alíquotas, que vão de zero a mais de 45%, com coisas absolutamente injustificáveis, como alíquotas diferenciadas em função da quantidade de quilos da máquina de lavar roupa.
O exemplo da máquina de lavar roupa é real?
É real. O fato é que faz todo o sentido acabar com o IPI. É um imposto muito distorcivo para o padrão de consumo moderno, que está bem estabelecido na literatura.
Voltando à necessidade da reforma tributária pós-pandemia, o ministro Paulo Guedes trouxe novamente o tema da CPMF. Faz sentido ressuscitar a CPMF ou algo da mesma natureza?
Eu acredito que não. A CPMF é um imposto muito ruim, tanto pelo impacto cumulativo, que é ruim, mas não é desastroso, mas principalmente por ser um tributo antiliquidez. É um imposto que tira liquidez das operações econômicas. Como exemplo, se você vai tomar um crédito de um dia, você vai pagar 0,05% de juros e vai pagar 0,2%, 0,5% de CPMF. Ou seja, vai ter um imposto que é um múltiplo do custo da transação, que são os juros. É um tributo extremamente distorcivo, tende a tirar muita liquidez da economia. E ao tirar liquidez da economia, você acaba tendo efeitos negativos para o crescimento no longo prazo, como por exemplo, você cria um incentivo para que as empresas fiquem mais líquidas do que ficariam sem o imposto. Portanto, reduz a taxa de investimento.
A CPMF seria uma muleta para arrecadar mais rápido?
A CPMF de fato é fácil de arrecadar. Mas é uma solução fácil e errada para o problema fiscal brasileiro.