Teatro Colón, Buenos Aires, agosto de 2005. Durante o ensaio da West-Eastern Divan Orchestra — um combinado de músicos árabes, judeus e espanhóis — o regente argentino de origem judaica Daniel Barenboim ergue a partitura de Tristão & Isolda, de Richard Wagner.

“Isso aqui mudou a história da música,” reclama, num tom bem acima do aceitável. “Ou vocês tratam essa obra-prima com o respeito que merece ou nunca mais rejo Wagner com vocês!”

Barenboim ordena uma pausa de dez minutos para que os instrumentistas recobrem o fôlego. Quando finalmente retomam seus postos, tocam o Prelude e o Liebestod de modo límpido e apaixonado. Repetiriam a dose no bis daquela noite, numa versão que arrancou lágrimas de todos os presentes daquela noite. Emocionado, o mesmo maestro que soltara os cachorros sobre a orquestra agora faz questão de saudar efusivamente cada músico.

1BD3C7E4 F304 47C3 BA56 A0F0C0CA6159Este estilo enérgico e apaixonado de comandar uma orquestra será  cada vez coisa do passado.

Barenboim comunicou hoje que irá se retirar das salas de concerto para tratar da saúde. Segundo o maestro, seus médicos o diagnosticaram com “problemas neurológicos sérios.”

“Meu foco agora será o meu bem estar. Sempre vivi de música e assim o farei, até a minha saúde permitir,” diz o comunicado em tom de despedida nas suas redes sociais.

Em agosto, Barenboim já cancelara sua participação numa nova montagem de O Anel do Nibelungo, e, em maio, desistiu no último minuto de excursionar com sua orquestra.

A aposentadoria de Barenboim é o prenúncio do fim da era dos super regentes – daquele período, resta apenas o indiano Zubin Mehta, cujo estado físico também não é dos melhores.

Desde os anos 90, tem surgido uma nova mentalidade na regência. Os maestros são menos ditatoriais e mais parceiros dos seus comandados. A figura do titular do pódio todo poderoso – como o austríaco Herbert von Karajan (que um dia disse que gostaria de tocar fogo na orquestra) ou o italiano Arturo Toscanini, que tinha como hábito chamar seus comandados de “cães” – foi trocada por regedores adeptos de um estilo democrático ou empenhado em causas sociais – casos de Sir Simon Rattle, futuro diretor da Orquestra Sinfônica da Rádio da Baviera, e Gustavo Dudamel, o chefe da Filarmônica de Los Angeles e da Ópera de Paris.

Daniel Barenboim é um regente soberbo, adepto da escola alemã de moldagem sonora. Ensaia exaustivamente uma peça até achar que ela atende suas expectativas – certa feita, obrigou a West-Eastern Divan Orchestra passar por quase dez vezes as notas iniciais da Quinta Sinfonia, de Beethoven, até o “tcham tcham tcham tchaaaaam” ficar do seu agrado.

Dono de um repertório vastíssimo, ia da delicadeza dos Concertos para Piano, de Mozart, às obras densas e pesadas de Anton Bruckner – os paulistanos, aliás, se regozijaram com os três concertos que ele deu à frente da Orquestra da Ópera Estatal de Berlim, em 2008, quando comandou, de cór, as três sinfonias do autor austríaco intercaladas com Wagner e Schoenberg.

“Me tornei regente apenas pelo prazer de comandar as sinfonias de Bruckner,” me disse certa vez numa entrevista. Abraçou como poucos a música do século XX – era pupilo do francês Pierre Boulez –, e regia ópera como se as partituras estivessem escritas na sua carne. Dedicou-se ainda ao cancioneiro popular. Sua discografia inclui trabalhos dedicados ao tango e à música brasileira.

O piano foi sua primeira grande paixão. Nascido em Buenos Aires no dia 15 de novembro de 1942, Barenboim tinha cinco anos quando teve as primeiras aulas do instrumento, e sete quando deu seu primeiro recital solo.

Seus pais mudaram para Israel em 1952, e dois anos depois o levaram para Salzburgo, na Áustria. Ali, o pianista e futuro regente conheceu Wilhelm Furtwangler, então diretor artístico da Filarmônica de Berlim, que o classificou como “um fenômeno”.

Barenboim estudou composição e harmonia com a francesa Nadia Boulanger – mentora de autores como Aaron Copland, Astor Piazzolla e Quincy Jones. Em 1967, casou-se com a violoncelista inglesa Jacqueline Du Pré. Tempos depois, ela seria diagnosticada com esclerose múltipla. Daniel foi acusado por alguns detratores – entre eles a irmã da violoncelista – de tê-la abandonado à própria sorte para prosseguir na sua trajetória de solista e maestro. O assunto, claro, o desagrada. “É uma questão pessoal e gosto de mantê-la assim,” afirmou. Casado com a também pianista Elena Bashkirova, é pai do violinista Michael e do produtor de rap David.

Barenboim foi diretor artístico da Orquestra de Câmara da Inglaterra, da Ópera da Bastilha, da Sinfônica de Chicago e da Orquestra Estatal da Ópera de Berlim. A sua Moby Dick, seu Santo Graal, no entanto, era a Filarmônica de Berlim, tida como a maior e melhor orquestra do mundo.

Em 1999, ele era candidato ao posto e não economizou charme: todos os dias ia visitar os músicos do conjunto sinfônico – que detém o poder de escolher o seu comandante – a fim de angariar eleitores para sua causa. No final das contas, perdeu a votação para sir Simon Rattle. “Chateado, EU?? Por que estaria?” me disse quando perguntei se ele não havia ficado triste de haver perdido o cargo para o inglês. “Faça-me essa pergunta daqui a cinco anos porque farei trabalhos que causarão impacto,” completou.

Embora Rattle colecione momentos memoráveis à frente dos berliners, seu rival atingiu feitos igualmente históricos: gravou todas as sinfonias de Beethoven com a Ópera Estatal e elevou a qualidade da orquestra a níveis inimagináveis. Por outro lado, ex-músicos e colaboradores o acusam de tirania e de métodos pouco polidos – como, por exemplo, atirar a partitura em cima de um instrumentista.

Na trajetória de Barenboim, a música sempre andou lado a lado com a política. No início dos anos 2000, comprou briga com o governo alemão, que não viu sentido em manter duas grandes orquestras na mesma cidade. Em 2001, comprou briga com os israelenses ao reger obras de Wagner em Jerusalém. A música do alemão, assumidamente anti-semita, é tabu naquele país porque foi trilha do extermínio dos judeus nos campos de concentração.

“A obra de Wagner foi desvirtuada pelos nazistas,” defendeu-se. “Se os israelenses querem destruir as lembranças do nazismo comecem com as Mercedes, que eram o carro predileto de Adolf Hitler e circulam livremente em Tel Aviv.” Em 2004, ao receber um prêmio no Parlamento de Israel, criticou a construção de um muro que separa o país das nações palestinas.

A West-Eastern Divan Orchestra é seu projeto mais ambicioso. Criada em parceria com o intelectual palestino Edward Said, ela parte do princípio de que não existe solução militar para o conflito entre Israel e Palestina. “Temos de conviver juntos e perceber que temos mais semelhanças do que diferenças”, diz ele. O conjunto sinfônico está baseado em Sevilha, na Espanha, local que historicamente abrigou os povos dessas duas origens. Em 2005, Barenboim e a West Eastern Divan fizeram um concerto histórico na cidade de Ramallah, na Palestina. “Todos são iguais perante Beethoven,” costuma dizer. Dois anos depois, levou seus comandados para a Faixa de Gaza.

Barenboim é um maestro fascinante, um pianista magistral e, como todo super regente, uma fonte inesgotável de anedotas. Certa feita, ao chegar no hotel de uma pequena cidade dos Estados Unidos com a Sinfônica de Chicago, horrorizou-se ao saber que a suíte presidencial estava reservada para Michael Jackson. Tantas fez o moço que acabou por desalojar o astro de Thriller.

Em outra ocasião, indignou-se quando o maitre de um restaurante chique negou mesas para os integrantes da orquestra – só o maestro poderia se sentar. “O maitre é grosseiro, a comida é horrível e as pessoas são feias e desinteressantes. Vamos para outro lugar.”

Bravo, maestro!