16 de junho de 2016 deveria ter sido um dia de glória para Robert Iger, então CEO da Walt Disney Company.
 
10081 410f4cfb f99d 0005 0005 23a63beb16b0Depois de 18 anos de preparação, 40 viagens à China, investimentos de US$ 6 bilhões e trabalho árduo de 14 mil operários, finalmente a Disney abriria as portas da Shanghai Disneyland. O parque era uma das maiores apostas já feitas pela companhia desde sua fundação em 1923. Àquela altura, Iger já somava 42 anos de Magic Kingdom – 11 deles no comando. 

No entanto, dois acontecimentos em Orlando, às vésperas do evento, tiraram o brilho da inauguração. O primeiro foi o tiroteio na boate Pulse, localizada a poucos quilômetros da icônica Disney World, em 12 de junho. Iger já estava na China quando foi informado que, dos 50 mortos, dois eram funcionários da Disney. Além disso, segundo a polícia, o terrorista teria pensado no parque mais famoso do mundo como o primeiro alvo para o massacre. Iger ficou lívido ao ouvir a informação. 

O segundo incidente aconteceu um dia antes da abertura do parque de Xangai. Um garoto de dois anosfoi atacado e morto por um jacaré em um dos hotéis da Disney em Orlando. Iger ficou dividido. Por um lado, era o anfitrião de um evento gigantesco, que receberia personalidades e autoridades de diversas partes do mundo. Por outro, não conseguia tirar o garotinho e sua família da cabeça. Na manhã seguinte, antes de cortar a fita para abrir o parque, decidiu telefonar para os pais da criança. Prometeu a eles que faria tudo o que estivesse a seu alcance para que aquilo nunca mais acontecesse (em 24 horas todas as centenas de lagoas e canais do complexo Disney, um colosso duas vezes maior que a ilha de Manhattan, estavam cercadas e sinalizadas). Em seguida, comandou a festa de inauguração. “Foi um dia feliz. Foi também o dia mais triste da minha carreira”, afirma Iger no prólogo de “The Ride of a Lifetime – Lessons Learned from 15 Years as CEO of the Walt Disney Company.” A obra, lançada nos Estados Unidos em setembro de 2019, chega ao Brasil no final do mês com o título “Onde os Sonhos Acontecem – Meus 15 anos como CEO da Walt Disney Company” (Editora Intrínseca). 

O resultado é um livro envolvente, que fisga a atenção do leitor desde o início – Bill Gates chegou a recomendar a leitura da obra durante a quarentena. 

Iger emerge não só como o responsável por aquisições que mudaram o rumo da companhia —  Pixar, Marvel, Lucasfilm e 21st Century Fox –, mas como um cara “boa praça”, hiper trabalhador (ele afirma acordar às 4h15), ambicioso, paciente para atingir seus objetivos e extremamente hábil no trato com as pessoas. Não se coloca como um sujeito genial ou visionário, mas como alguém que mantém o ego sob controle e, se necessário, engole sapos para alcançar suas metas. 

De origem modesta, Iger começou a trabalhar na adolescência fazendo bicos como limpador de neve e estoquista em uma loja de ferragens. Entrou na ABC em 1974 (a emissora viria a ser adquirida pela Disney em 1996) como supervisor de estúdio, um título que pode parecer imponente, mas que pagava US$ 150 por semana e implicava em fazer praticamente tudo o que fosse necessário para o estúdio funcionar – de acender as luzes às 4h30 a garantir que o ar-condicionado mantivesse uma temperatura agradável para a equipe. 

Numa ocasião, seu chefe na ABC, um sujeito perfeccionista e eternamente insatisfeito, lhe perguntou como ele estava. Iger respondeu que havia dias em que sentia dificuldade de manter a cabeça fora d´água. O chefe não pestanejou: “Arranje um snorkel mais comprido.” Pode não ter sido exatamente fofo, mas o conselho ficou na cabeça de Iger. Ao longo da carreira ele aproveitou todas as oportunidades que apareceram. Foram 20 cargos e 14 chefes até se tornar o CEO da Disney, num longo e penoso processo de convencimento do conselho de administração para nomeá-lo sucessor do lendário Michael Eisner. Se isso não é persistência e visão de longo prazo, é difícil dizer o que é.

Ao longo do livro, Iger espalha “pílulas de liderança” que o ajudaram a multiplicar o valor de mercado da companhia por cinco ao longo de 15 anos. Entre elas estão: “faça as perguntas necessárias, admita sem desculpas o que não entende e se esforce para aprender o que for necessário o mais rápido possível” a “a decisão de interromper um modelo de negócios que está funcionando requer muita coragem”. Uma das minhas favoritas é a que fala que a maioria dos negócios é pessoal, sobretudo se você está negociando com um fundador.

Essa visão foi fundamental para que Iger conseguisse convencer Steve Jobs a vender a Pixar para a Disney, em 2006,  num de seus movimentos mais emblemáticos ao se tornar CEO. Foi preciso tato e paciência para dobrar Jobs, um empreendedor tão inventivo quanto mercurial. Foi preciso também abrir mão de pequenos sinais de poder e autonomia para garantir a preservação da cultura da Pixar. Medidas simples, sem custo para a Disney e com grande valor para a Pixar, como assegurar que os funcionários da Pixar manteriam seus endereços de email com o nome da empresa, as placas nos prédios permaneceriam com o nome Pixar, e que rituais tipicamente “pixarianos”, como as cervejadas mensais, continuariam no calendário. A sensibilidade que Iger teve para entender a importância que esse legado tinha para Jobs acabou sendo a base de uma relação de confiança e amizade. Tanto que minutos antes de fechar o negócio, Jobs contou a Iger que estava com câncer – algo que até então só sua mulher e médico sabiam. 

Em fevereiro deste ano, poucos meses após a publicação do livro, Iger passou o cargo de CEO da Disney para Robert Chapek. Seu plano era continuar apenas no conselho. Ele estava no auge – tanto que nos últimos tempos vinha considerando seriamente a possibilidade de concorrer à Casa Branca em 2020. A pandemia, porém, mudou o jogo. A Disney está sendo duramente afetada – seus parques ficaram fechados quatro meses – e Iger se viu envolvido no dia-a-dia da empresa, agora com o cargo de chairman executivo. De quebra, viu a Netflix superar a Disney em valor de mercado e a guerra pelo mercado de streaming se acirrar. O modo como ele está lidando com a situação mais crítica de sua carreira de quase cinco décadas certamente renderá um posfácio interessante para este livro no futuro.

 
Cristiane Correa é autora de “Sonho Grande”, “Abilio” e “Vicente Falconi”.