Em 1985, Michael Jordan, camisa 23 do Chicago Bulls, se machucou durante uma partida. Caiu de mau jeito e quebrou o tornozelo esquerdo. Recém-chegado ao time, viu-se obrigado a abandonar as quadras até se recuperar. Para alguém tão obsessivamente dedicado ao esporte, não havia punição pior. Escondido de todos, Jordan começou a treinar por conta própria. Um dia, avisou que estava pronto para retornar, mas, temerosos, os médicos e dirigentes avaliaram que colocá-lo em quadra era arriscado demais.
 
Se Jordan machucasse o tornozelo novamente – eles estimavam uma chance de 10% disso acontecer – sua carreira estaria acabada. O dono do time, Jerry Reisnfeld, tentou dissuadi-lo. “Se você estivesse com uma dor de cabeça horrenda e eu te desse um vidro com 10 comprimidos, sendo que nove te curariam e um te mataria, você tomaria um deles?”, perguntou Reinsfeld. “Depende se dói pra cacete!”, respondeu Jordan, que obviamente assumiu o risco e entrou em quadra na partida seguinte – ainda que por 7 minutos.
 
Poucas cenas são tão emblemáticas da personalidade de Michael Jordan, o maior jogador da história do basquete, quanto a retratada acima. Ela faz parte do documentário “Arremesso Final” (“The Last Dance”, no original) na Netflix, que mostra em 10 episódios a incrível trajetória de Jordan e do Chicago Bulls nos anos 90. O que se vê nos quatro episódios já disponíveis (são lançados dois por semana) é muito mais do que uma sequência de arremessos espetaculares, enterradas humilhantes e assistências impensáveis.
 
Ao misturar imagens de jogos clássicos, cenas inéditas dos bastidores do Bulls e entrevistas feitas com ex-jogadores, técnicos, dirigentes e jornalistas esportivos, o diretor Jason Hehir constrói uma narrativa capaz de empolgar tanto quem é fã do esporte quanto quem não é exatamente um aficionado. É acima de tudo uma história de liderança e da busca incondicional pela vitória, com lições que valem para o esporte, os negócios e a vida.
 
Jordan, o gigante que chegou a marcar 69 pontos em uma única partida (contra o Cleveland Cavaliers, em 1990) emerge como um líder carismático e implacável, que costumava treinar mais que os demais jogadores e não hesitava em discutir com os companheiros de time quando achava que eles não estavam se esforçando tanto quanto deveriam.  “Minha personalidade inata é ganhar a qualquer custo”, diz no documentário, contando que seu maior rival na infância era o irmão, com quem brigava pela atenção do pai.
 
Tornar-se um vencedor, porém, levou tempo. 
 
Logo nos primeiros anos no Bulls, Jordan se consagrou como um dos melhores jogadores da NBA. Em 1985, ajudou a levar o time aos playoffs e ganhou o título de melhor calouro da temporada. Era sempre o cestinha. Voava na quadra (os adversários sabiam que era preciso parar “Air Jordan” enquanto ele ainda estava com os dois pés no chão, porque depois que saltasse, já era). A imprensa o incensava e dizia que Jordan havia resgatado uma “franquia morimbunda”.  Só havia um problema: seu time não ganhava. Quem levantava troféus eram outros grandes jogadores como Magic Johnson, do Los Angeles Lakers, e Larry Bird, do Boston Celtics. Jordan, ainda que fosse o mais talentoso, continuava um perdedor. No documentário ele admite o quanto isso era difícil de engolir.
 
A situação começa a mudar quando Phil Jackson assume como técnico. Ao contrário de seu antecessor, Doug Collins, que orquestrava o Chicago Bulls para que Jordan brilhasse, Jackson acreditava que para vencer era preciso ter mais que um superastro na equipe. Essa visão fez toda a diferença. Sob o comando de Jackson, o time ganhou seu primeiro campeonato da NBA em 1990/1991 e passou a dar espaço para que outros gigantes como Scottie Pippen se destacassem. Ao segurar a taça pela primeira vez, Jordan caiu no choro, surpreendendo os colegas acostumados a ver apenas suas demonstrações de raiva e frustração (vários anos depois, outro choro de Jordan se transformaria em meme, mas isso já é outra história).
 
Pelo menos até agora, o segundo personagem mais interessante do documentário é o treinador Phil Jackson. Filho de pai pastor, ex-hippie, ex-jogador da NBA, Jackson misturava ensinamentos táticos com lições de zen budismo e a sabedoria dos nativos americanos, uma receita pouco ortodoxa que levou o Bulls ao hexacampeonato. 
 
Jackson conseguia lidar até com o bad boy Dennis Rodman. Tatuado e com os cabelos coloridos, Rodman era o oposto do ultradisciplinado Jordan. Bebia, gostava de farra, namorava celebridades como Madonna e Carmen Electra. Jackson foi capaz de entender que, para funcionar nas quadras, Rodman precisava de liberdade fora dela. Numa das passagens mais divertidas do documentário, Jordan conta relembra uma ocasião em que Rodman pediu férias. Jackson concordou em dar 48 horas para que o jogador se divertisse um pouco em Las Vegas. Jordan tinha certeza de que ele não voltaria no prazo combinado. Estava certo. Rodman só voltou aos treinos depois de Jordan em pessoa ir resgatá-lo (só não conto onde e com quem Rodman estava porque seria spoiler).
 
Tão importante quanto o conhecimento técnico de Jackson sobre o esporte era sua capacidade de extrair o melhor de jogadores com personalidades tão diferentes. Havia disputas internas? Sim. Descontentamentos? Claro. Mas havia sobretudo a certeza de que os verdadeiros inimigos estavam fora do ginásio do Chicago Bulls – e era com eles que o time deveria ser implacável.
 
Ironicamente, a maior ameaça à soberania do Chicago Bulls não veio dos rivais, mas de dentro de casa. Atendia pelo nome de Jerry Krause e era o gerente do time. De acordo com o documentário, o burocrata baixinho e gordinho entrou em rota de colisão com Jackson  e, por tabela, com Jordan – numa trama que deve ganhar mais detalhes e calor nos próximos episódios. Depois de vencer o campeonato de 1998, técnico e jogador deixariam a franquia (o título do documentário remete a essa temporada). Krause demonstrou seu poder, mas enterrou o time: o Chicago Bulls nunca mais venceu um campeonato da NBA. Gênio.
 
Cristiane Correa é autora de “Sonho Grande”, “Abilio” e “Vicente Falconi”.