O português Valter Hugo Mãe – née Valter Hugo Lemos –, nascido em Angola, atuou por pouco tempo como advogado após se formar em Direito pela Universidade do Porto. Sua vocação sempre foi a literatura e as artes.

Dono de uma considerável e premiada bibliografia, já publicou mais de 30 livros, entre romances, antologias e poemas. Sua obra tem a marca de uma profunda sensibilidade, notadamente em relação às formas de sentir e expressar afeto.

Um dos grandes méritos da literatura é aguçar a sensibilidade. Pelos livros, somos levados a experimentar sentimentos que desconhecíamos, que estavam guardados ou que tínhamos receio de explorar. Como por encantamento, somos expostos ao mundo pela mente de outra pessoa, que narra sua particular percepção dos encontros e desencontros da vida.

Ver o mundo pelo olhar do outro nos ensina que ele é vasto, e vai muito além de onde enxergamos. Mais ainda, há diversos ângulos, inclusive emocionais, para compreender o mesmo fenômeno. Se não somos capazes de respeitar outros pontos de vista, temperamentos e crenças, é porque nosso mundo não passa de um cercado pequeno, sem horizonte.

No caso de Valter – que além de romancista é também poeta –, o resultado desse talento de ver o mundo com o olhar do outro é uma prosa lírica. Para mim, sua obra mais forte é O filho de mil homens, publicada em 2011.

A história é singela. Um pescador – homem simples, solitário – quer um filho aos 40 anos. Ele se sentia pai, embora lhe faltasse um filho. O homem era só metade. Queria amar e ser amado – um desejo legítimo, pois até Deus quis ter um filho.

O pescador acaba por encontrar um órfão de uma anã e, com ele, estabelece uma relação de afeto familiar. O menino convence o pescador a achar uma mulher e, assim, passar a ser o dobro. Quando o humilde pescador se interessa por uma mulher, ele sorri. Percebe que não é mais um sorriso como outro do passado. “Era o dobro de um sorriso.”

O objeto da afeição do pescador era Isaura – esta, por sua vez, uma mulher desvirginada pelo noivo que a abandonou. Tornou-se uma rejeitada socialmente. Por isso, acaba aceitando o casamento com o doce Antonino, homossexual e pária naquela pequena comunidade. Por sua orientação sexual, Antonino sequer era aceito pela mãe e, da mesma forma, vivia carente de afeto.

Seu casamento de aparências com Isaura apenas ganha algum sentido com o ingresso do pescador na relação, pois Antonino passa a ser respeitado pelo que é, sem preconceitos. Os personagens, tais como nós, querem encontrar seu lugar: um lugar onde recebem respeito.

Uma série de encontros são narrados nesse lindo romance, no qual os protagonistas são gente simples, com as dificuldades e inseguranças normais, em busca de afeto. “Amar uma pessoa é o destino do mundo,” o livro ensina.

Fica claro que as convenções sociais são pouco importantes quando se trata de afeto. Cada um tem seu caminho para ser feliz. O verdadeiro amor nasce e se fortalece das mais variadas formas. Como Milton Nascimento eternizou em verso: “Qualquer maneira de amor vale a pena”.

Dentre as relações exploradas em O filho de mil homens, avulta-se aquela estabelecida entre pais e filhos. Uma relação fortíssima, um vínculo de amor absoluto, mas também de projeções e frustrações. O afeto, contudo, sempre prepondera: “desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser.”

Os pais têm o propósito de ensinar, de guiar, de amar. O pescador “explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa. Isso dava também para as variações estranhas do amor. O miúdo perguntava se havia quem amasse por crime, por maldade. Alguém amar por maldade, repetia. O pai achava que talvez não. A maldade tinha de ser o contrário de amar”.

O filho de mil homens deixa claro que sociedade precisa desse olhar afetivo, sensível, com empatia. Em todos os níveis de relação, colocar-se no lugar do próximo é o ponto de partida e de chegada. Sem respeitar a verdade dos outros não há diálogo construtivo. Deixamos de ser uma comunidade. Nossa verdade é uma verdade menor – talvez sequer seja verdade – se não puder ser compartilhada.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados e autor de livros como “Shakespeare e os Beatles”, “Como os Advogados Salvaram o Mundo” e “O Espelho Infiel.”