Desde sua consagração como autor de novelas, Aguinaldo Silva criou um personagem polêmico e destemido. Sem papas na língua, falava o que bem entendia, não poupava nas entrevistas atores e atrizes que lhe desagradavam e tratava como desafetos colegas que também escreviam para o horário nobre da Rede Globo.

Por isso, a autobiografia Meu Passado me Perdoa – Memórias de uma vida novelesca (Editora Todavia, 400 páginas, R$ 89,90) chegou às livrarias cercada de expectativas, mas não há como avançar pelas páginas sem uma dose de decepção. Para contar a própria história, Aguinaldo, hoje com 81 anos, se transformou em outro personagem, um mais contido, o protagonista da novela que foi sua vida antes da fama.

O livro apresenta Aguinaldo como um senhor maduro e guiado pelo bom senso diante do computador. Ao olhar para trás, talvez pelo distanciamento, o autor raramente deixa vir à tona sua passionalidade, e são poucas as fragilidades expostas – no máximo, uma decepção amorosa distante.

Sem negar o jornalista que é, ele abre o livro puxando do passado um assunto de conexão inegável com o presente. Retrata a origem modesta em Pernambuco, o bullying e os ataques homofóbicos que sofreu na infância e na adolescência, bem como o que chama de perda da inocência. Aos 13 anos, o garoto descobriu que podia fingir para ser aceito em uma sociedade preconceituosa em relação à sua homossexualidade, e demorou a se livrar disto.

A convivência com a turma juvenil – “as arlequetes”, um grupo de meninos gays que se entregavam aos prazeres da vida – rende bons causos, narrativas inusitadas que funcionam como uma espécie de contos paralelos à biografia, mas se arrasta demais. São mais de 100 páginas até Aguinaldo, jovem adulto, começar a carreira no jornalismo e aí, sim, ter início a parte mais relevante da obra.

O cotidiano das redações e os bastidores das reportagens, primeiro no Recife e depois no Rio de Janeiro, colaboram para relembrar os momentos tensos de um País mergulhado na repressão militar. O próprio Aguinaldo foi detido e conta seu sofrimento no presídio da Ilha Grande. Ficam claras as influências destas experiências pessoais e profissionais para o dramaturgo das décadas seguintes.

Ao cobrir, repórter iniciante, uma comitiva do político Miguel Arraes (1916-2005), então candidato ao governo de Pernambuco, em 1962, Aguinaldo guardou na memória a sacada que inspiraria o prólogo da novela Senhora do Destino (2004). Um caso de racismo – vivido por um colega de redação na Baixada Fluminense dos anos de 1970 – serviu de mote para um episódio da série Plantão de Polícia.

Quando Aguinaldo recebeu o convite do diretor Daniel Filho para integrar a equipe de roteiristas de Plantão de Polícia, estava desempregado e sem perspectivas nas redações. Foi sua estreia na Globo, em 1978. Só que aí o leitor já está na página 257 e, por mais talento para a síntese que Aguinaldo possa ter, já se entende que sua história na televisão não deverá ganhar contornos mais detalhados.

O futuro grande novelista confessa que nunca havia acompanhado um folhetim e nem de longe se interessava pelo gênero.
“Para mim, era uma coisa menor que, na programação da TV, se destinava apenas a exibir os anúncios de um supermercado então muito popular, as Casas da Banha”, conta ele, refletindo o pensamento típico de uma geração que via a TV e as novelas como algo inferior.

Em 1984, entretanto, depois de três minisséries bem-sucedidas, veio a intimação para Aguinaldo dividir os créditos de Partido Alto com outra novata, Glória Perez, que, ao contrário dele, valorizou a oportunidade.

A parceria não deu certo, e Glória terminou a novela sozinha. A Globo deu uma nova chance a Aguinaldo e, no ano seguinte, entregou em suas mãos a missão de escrever Roque Santeiro, novela criada por Dias Gomes em 1975 e proibida pela censura com 40 capítulos gravados. Dias, de viagem marcada, saltou fora da empreitada, e Roque Santeiro se tornou um fenômeno de audiência.

Dias e Aguinaldo lavaram muita roupa suja na imprensa sobre quem seria o verdadeiro autor da novela – aquele que a criou, ou quem tocou o barco e escreveu sozinho mais de um terço dela?

No fim das contas, Aguinaldo,  respeitoso ao currículo de Dias, encerrou a polêmica num amistoso encontro diante de uma mesa de café da Globo. “Você toma com açúcar ou adoçante?” perguntou Dias ao rapaz, que escolheu a segunda opção. “Faz muito bem,” respondeu o autor das clássicas O Bem-Amado (1973) e Saramandaia (1976).

Depois de Tieta (1989), Aguinaldo ascendeu ao panteão dos grandes novelistas e emplacou uma campeã de audiência atrás da outra. Pedra sobre Pedra (1992), Fera Ferida (1993), A Indomada (1997), e por aí foi.

Criou uma linguagem capaz de fundir crítica social e realismo fantástico para mostrar o cotidiano e as desigualdades do povo brasileiro, seja em cidades fictícias do Nordeste ou nas periferias do Rio de Janeiro.

Para ele, seu sucesso vem da própria inexperiência no gênero – como espectador e autor –, tornando cada tarefa recebida em um novo e desafiador exercício.

“O problema é que algumas coisas que despudoramente fiz por puro desconhecimento acabaram por dar certo. E, por isso, esse tom meio desordenado e anarquista que caracteriza todas as minhas obras foi considerado o ‘meu estilo’,” justifica no livro, forçando uma modéstia incompatível com o vaidoso autor dos velhos tempos.

Em Meu Passado me Perdoa, Aguinaldo deu trégua à fofoca – algo surpreendente. No máximo, expõe desavenças com o ator José Lewgoy (1920-2003) nos bastidores da novela O Outro (1987), a falta de sintonia com Marcos Paulo (1951-2012), então diretor de Porto dos Milagres (2001), e comenta a crise que fez naufragar O Sétimo Guardião (2018), sua última produção.

É humilde ao dar crédito a Wolf Maya pela escalação de Renata Sorrah para a personagem Nazaré – o grande trunfo de Senhora do Destino – e cobre de elogios Betty Faria e Susana Vieira, intérpretes de várias de suas criações.

O Aguinaldo Silva que escreveu Meu Passado me Perdoa não é o mesmo que bombava o horário nobre. Baixou a crista, parece tranquilo na empreitada revisionista e controla os arroubos de estrela. O autor deve ter entendido que, na era da instantaneidade, as provocações não valem a pena, e preferiu narrar os caminhos que explicam como ele, menino simples, se tornou um dos maiores novelistas do País.

Meu Passado me Perdoa é um livro sobre a construção desta trajetória. Como não precisa mais fingir para ser aceito, Aguinaldo abandona o antigo personagem e traz uma serenidade inédita. Essa escolha gera uma quebra de expectativa, mas não deixa de ser um sinal de grandeza em um roteiro de superações.

É como se, ao desvendar suas memórias, se desculpasse pelo ego exacerbado comum aos poderosos de uma Globo que ficou no passado.