Uma das mais antigas empresas americanas, a General Electric era o ícone de uma cultura que encorajava a audácia e a inventividade, e que celebrava seus vencedores. A companhia teve Thomas Edison entre seus fundadores e atingiu seu ápice sob o comando de um dos mais festejados CEOs do seu tempo, Jack Welch.

Mas o fabuloso conglomerado, construído ao longo de mais de um século, experimentou uma queda também fantástica, chegando a perder 90% do seu valor de mercado entre esse auge, na virada do milênio, e seu pior momento, durante a pandemia de 2020.

Durante o período em que a empresa foi liderada por Jeff Immelt, o sucessor escolhido por Welch, ficou claro que suas entranhas eram bem menos elegantes do que os ternos bem cortados de seus executivos.

Jack WelchFocada em bater metas de curto prazo, a cultura da GE esgarçou seus escrúpulos contábeis e escondia, sob a superfície de resultados acima do consenso, uma ginástica desenfreada para satisfazer as expectativas de um mercado pouco diligente que vivia – ainda vive – inebriado por resultados de curto prazo.

O case de turnaround da GE é uma história de desintoxicação empresarial — uma que parte do reconhecimento de modelos de negócios sólidos mal geridos por líderes arrogantes e curtoprazistas, e que se constrói a partir do restabelecimento de uma cultura que prioriza eficiência, sustentabilidade e a lucratividade duradoura de suas linhas de negócio.

Todo este processo só foi possível por andar em paralelo com uma completa reforma do conselho de administração, que foi enxugado e recomposto por pessoas com real competência para adicionar valor e envolvimento efetivo nas questões de governança.

Turning point

O momento crucial, não só para a sobrevivência, mas para o ressurgimento do forte conglomerado industrial que é a GE, foi a entrada de Larry Culp no conselho, seguida por sua eleição como chairman e, enfim, sua nomeação como CEO — tudo em 2018.

Com um perfil oposto ao que se costumava ver nos altos escalões, Culp é um executivo obcecado por eficiência, que gosta do chão de fábrica e entende que o tempo de um CEO rende mais longe dos holofotes e perto daqueles que fazem de fato a criação de valor dentro de uma empresa.

No período em que foi CEO do conglomerado industrial Danaher, Culp implantou um sistema de otimização de processos inspirado na revolução de produtividade do Japão da década de 80, e que ia do chão de fábrica à suíte dos executivos.

O Danaher Business System (DBS) era rigorosamente seguido e implementado em todas as empresas adquiridas pelo grupo. Todos os executivos eram treinados em DBS e responsáveis por treinar as próximas gerações.

Os ganhos de produtividade dele advindos, que se traduziram em melhoria significativa de margens, estão por trás do invejável sucesso da Danaher sob o comando de Culp. Durante seu período como CEO, entre 2000 e 2014, o lucro líquido da empresa aumentou cinco vezes, e seu valor de mercado foi de US$ 9,7 bilhões para US$ 60,3 bilhões.

A situação da GE era bem diferente. Ao assumir o comando da empresa, em outubro de 2018, a dívida chegava a US$ 133 bilhões,   8,2 vezes seu EBITDA.

A receita dos 12 meses anteriores havia sido de US$ 112 bilhões, que geraram um fluxo de caixa livre negativo em US$ 5,7 bilhões e um prejuízo de US$ 867 milhões.

Essa complicada equação era resultado da combinação de uma miríade de negócios com pouca sinergia entre si, e da megalomania vaidosa, imediatista e pouco rigorosa de seus antigos líderes.

Nenhum aspecto da empresa espelha melhor esta postura do que a história da GE Capital. O status triple A da GE permitia que ela captasse recursos no mercado a taxas muito atraentes, sem o peso regulatório de uma instituição financeira.

Atuando em uma cadeia de valor intensiva em capital, havia uma clara oportunidade para utilizar esses recursos “baratos” para financiar tanto seus clientes, o que lhe renderia mais vendas, quanto seus fornecedores, que lhe propiciariam melhores condições de negociação. A divisão se tornou tão grande que, em 2008, no seu auge, gerou US$ 67 bi de receita anual.

A partir de um certo momento, entretanto, “o rabo começou a abanar o cachorro”, e o que era um conglomerado industrial passou a se assemelhar a um banco, fazendo inclusive com que as autoridades passassem a tratá-la com tal. (De fato, se fosse um banco, seria o quinto maior dos Estados Unidos.)

Mas a recessão que se seguiu à crise de 2008 fez deteriorar o equilíbrio entre ativos e passivos da GE Capital. Em 2018, a divisão era fortemente deficitária e punha em dúvida a sobrevivência de todo o conglomerado.

No entanto, um exame detalhado do que se amontoava sob o guarda-chuva da GE revelaria duas boas e sólidas operações, algumas iniciativas promissoras e outras nem tanto.

Larry CulpAviation, healthcare e energia eram as unidades com potencial de crescimento e lucro no longo prazo, além de alinhadas ao DNA da empresa. Foram essas as escolhidas por Larry Culp para pavimentar o futuro da companhia. O que havia de valor nas demais divisões seria vendido para reduzir a dívida sufocante.

A jóia da coroa é a GE Aviation, a principal fornecedora de turbinas para aviação comercial, com praticamente metade do mercado mundial de aeronaves.

A empresa é líder em uma atividade com altas barreiras à entrada, switching cost elevado e poder de ditar preços, além de forte geração de receitas recorrentes. Uma vez em operação, uma turbina demandará mais de duas décadas de manutenção e reparos, necessários tanto pelo uso quanto por exigência regulatória – serviço esse que a GE fornece ao longo de toda a vida útil do equipamento.

Uma dinâmica semelhante ocorre em boa parte dos produtos da área de healthcare. Equipamentos complexos, com preço unitário alto, diferenciação tecnológica e que demandam manutenção.

O segmento de energia está intimamente ligado à origem secular da empresa. A GE ainda é hoje importante player na fabricação de turbinas a gás, hidráulicas e eólicas.

Vento de proa

Quando o voo 302 da Ethiopian Airlines que partiu de Adis Abeba em 10 de março de 2019 carregando 157 pessoas a bordo de um Boeing 737 MAX foi interrompido apenas seis minutos após a decolagem, matando todos os seus ocupantes, o turnaround recém-iniciado por Culp sofreu seu primeiro grande revés.

O 737 MAX é equipado com turbinas produzidas pela CFM International, uma joint venture entre a GE Aviation e a empresa francesa Safran Aircraft Engines.

Este modelo respondia sozinho por US$ 400 milhões do fluxo de caixa da empresa a cada trimestre. Todas as aeronaves do modelo ficaram impedidas de voar no mundo todo até o fim de 2020.

Mas o pior ainda estava por vir.

A pandemia colocaria praticamente toda a frota mundial de aviões no chão, os carros nas garagens, os trens nas estações, e as pessoas, dentro de casa.

O redimensionamento que a empresa foi forçada a fazer na pandemia acabou por acelerar a adoção de medidas duras que teriam que acontecer cedo ou tarde. Funções corporativas foram extintas ou empurradas para as unidades operacionais, eliminando bilhões de dólares em custos.

O processo de turnaround seguiu mesmo enquanto a prioridade era garantir a própria sobrevivência.

Para reduzir a excessiva alavancagem, ativos valiosos foram vendidos ou, de alguma forma, monetizados. A parte lucrativa da GE Capital, chamada GECAS – GE Capital Aviation Services, que fazia leasing de aeronaves, foi fundida com uma das líderes do setor, a Irlandesa AerCap.  A operação que gerou US$ 24 bilhões para a GE, que ainda permaneceu com 54% na empresa resultante.

A equivocada aquisição da Baker Hughes foi desfeita e diversas iniciativas digitais foram empacotadas e posteriormente vendidas. Ao final do 1º trimestre de 2023, o endividamento havia se reduzido para US$ 23,5 bilhões, 2,6 vezes EBITDA. A GE Capital fazia agora parte do passado.

Culp também não perdeu tempo em implantar as metodologias de melhoria operacional que tanto definiram seu sucesso na Danaher, mesmo enquanto lutava para manter a empresa operando.

Futuro em três versões

Superado o risco de colapso, era hora de olhar para a frente. A GE havia se tornado uma empresa com três unidades de negócio com potencial para serem atores importantes e lucrativos em seus respectivos setores.

O passo seguinte seria prepará-las para seguir seu caminho de forma independente e, no processo, gerar valor para o acionista, apostando que a soma das três seria maior do que o valor de tê-las sob o mesmo teto.

No início de 2023, a GE ofereceu a seus acionistas uma ação da GE Healthcare (GEHC) para cada três ações detidas de GE, que reteve 19,9% das ações da nova empresa em tesouraria. Ao fim de abril, um acionista da GE que manteve as ações de GEHC teria tido uma apreciação total de 84,9%.

Está se mostrando válida até aqui a hipótese de que empresas focadas, livres para canalizar energia para suas áreas específicas, atraem acionistas alinhados com suas atividades, dispostos a pagar um prêmio por isso, e eliminam o “desconto de conglomerado”.

O próximo passo é fazer o spinoff da unidade de energia, batizada de Vernova, planejado para o início de 2024. Com receita de US$ 29 bilhões em 2022, o segmento ainda luta para alcançar lucratividade.

Em 2022, teve um prejuízo líquido ajustado de US$ 1 bilhão e espera que esse número fique entre US$ -600 milhões e US$ -200 milhões neste ano, entregando ao mercado uma empresa lucrativa em 2024.

Os incentivos do Inflation Reduction Act já indicam um forte aumento de demanda que permitirá os ganhos de escala que, combinados com a maturação dos ganhos de eficiência, projetam um cenário promissor para a empresa.

Assim como no caso de GE Healthcare, o plano é que a GE mantenha inicialmente uma participação de 20% na nova empresa listada.

Uma vez concluído o saneamento da cultura da empresa, a rotina de melhoria contínua dos processos operacionais e a venda de atividades non-core, Culp passará a ter a opção de zerar o endividamento vendendo as participações nas empresas desmembradas.

Nosso relacionamento de quase duas décadas com Larry Culp, desde os tempos da Danaher, nos permitiu visualizar as possibilidades para a empresa e ter convicção sobre as chances de sucesso do turnaround.

Sua conclusão provavelmente se dará com um processo de sucessão deliberado, que envolve uma alocação contínua de tempo por parte do CEO no preparo de um executivo capaz e fiel ao objetivo de geração de valor no longo prazo através da cultura de melhoria contínua, como ocorreu na Danaher, que hoje vale quase US$ 200 bilhões — 20 vezes mais do que quando Larry se tornou CEO.

A primeira, segunda, terceira — e enésima — coisa mais importante para uma empresa é ter ética, qualidade e alinhamento na sua liderança. Os números decorrem disso.

 

Roberto Vinháes e Rodrigo Lobo são sócios da Nextep, uma gestora que tem posição em ações da GE há 5 anos. Os autores agradecem a colaboração de toda a equipe de analistas.

 

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