Na formulação da política tributária, somos constantemente desafiados por um dilema, o tradeoff entre equidade e eficiência econômica.
A equidade está relacionada à justiça tributária. Em um sistema justo, os ricos pagam mais impostos que os pobres como proporção da sua renda, e as alíquotas de imposto de renda são progressivas, aumentando conforme o patamar de renda da pessoa física.
Já a eficiência econômica está ligada à neutralidade tributária. As regras de tributação devem influenciar o mínimo possível o comportamento dos agentes econômicos e não atrapalhar a livre concorrência. Devem ser aplicadas as mesmas regras de tributação para situações equivalentes, com isonomia.
A quebra de neutralidade gera distorções alocativas. Uma regra de tributação mal desenhada acaba levando as pessoas a aplicarem os seus recursos de forma ineficiente.
A literatura econômica mais recente, contudo, demonstra que esse tradeoff não se faz presente em toda e qualquer situação. O livro Progressividade Tributária e Crescimento Econômico, organizado por Manoel Pires (FGV-IBRE), contém diversos artigos sugerindo a possibilidade de se buscar mais equidade sem comprometer, necessariamente, a eficiência econômica.
A (falta de) tributação das empresas constituídas no exterior – as offshores – era um desses casos em que havia um duplo problema de iniquidade e ineficiência econômica.
A regra anterior à Medida Provisória 1.171 permitia o acúmulo de capital no exterior por muitos anos, com transmissão do patrimônio de geração a geração, sem pagamento de imposto de renda no Brasil. Como essas empresas costumam ser constituídas em países de baixa tributação – os “paraísos fiscais” – também não é pago imposto no exterior. Havia um desequilíbrio, com impactos regressivos e concentradores de renda – exatamente o contrário da desejada redução da desigualdade social.
A regra anterior causava ineficiência econômica. Ela tributava de forma mais benéfica o brasileiro que remetia dinheiro para fora em comparação com aquele que investia no Brasil. Enquanto o investidor local é tributado periodicamente sobre sua renda financeira, os lucros das offshores não eram tributados até o momento da efetiva distribuição para a pessoa física (o “diferimento tributário”).
Mesmo entre aqueles que investem fora, a estrutura com menor carga tributária – um fundo de investimento exclusivo no exterior – estava disponível somente para as pessoas com patrimônio muito elevado. Não havia isonomia.
A MP 1.171 soluciona o problema de forma equilibrada. São criadas alíquotas progressivas de 0%, 15% e 22,5% sobre os rendimentos financeiros no exterior. O lucro de uma offshore passa a ser tributado pelo sócio pessoa física todo ano. A variação cambial do principal aplicado só é tributada no retorno de capital ao Brasil, como já ocorria antes.
As aplicações financeiras no exterior feitas pela pessoa física (sem a interposição de empresa offshore), que ficavam sujeitas ao imposto de 27,5% ou de 15% a 22,5%, dependendo da situação, com incertezas, têm a sua tributação unificada na tabela nova. A MP simplifica a vida do contribuinte ao permitir o pagamento do imposto uma vez só, após o fim do ano, evitando a dor de cabeça dos recolhimentos mensais.
A norma vai além e regulamenta os trusts, uma figura contratual muito utilizada em países de origem anglo-saxã para sucessão familiar. Os trusts não estavam previstos na nossa legislação tributária, o que gerava insegurança jurídica e risco de dupla incidência de impostos, ou nenhuma incidência de impostos – ambas situações indesejadas. A solução é a mais simples possível, a transparência do trust para fins fiscais.
A nova regra foi publicada por MP na véspera do 1º de maio porque a correção da faixa de isenção do imposto de renda da pessoa física para dois salários mínimos (R$ 2.640) não podia esperar. A tributação das offshores, focalizada nos mais ricos, é a fonte de financiamento da nova faixa de isenção, beneficiando os mais pobres. É uma solução estrutural, adequando o nosso imposto de renda às práticas internacionais recomendadas pela OCDE e adotadas há décadas por países como os EUA, o Reino Unido e outros tantos da União Europeia e da América Latina.
Os dispositivos da MP sobre tributação de aplicações financeiras no exterior só entram em vigor em 1º de janeiro de 2024, após a tramitação pelo Congresso Nacional, que dispõe do prazo de até 120 dias (suspenso no recesso parlamentar) para análise.
Na transição para o novo regime, a MP dá ao contribuinte a opção de atualizar o valor dos seus ativos no exterior até o final de 2022 (e de 2023 para as offshores) e pagar o imposto sobre o ganho de capital pela alíquota reduzida de 10%. A adesão deve ser feita pelo contribuinte após a conversão em lei da MP e até o dia 30 de novembro de 2023.
O Ministério da Fazenda tem ouvido os contribuintes em diversas audiências e eventos com o setor privado e a academia. Recebemos, preponderantemente, apoio à tributação das offshores e sugestões de aperfeiçoamento do texto. Estamos refletindo sobre temas como variação cambial e formatos complexos de trusts, como os irrevogáveis e discricionários. Essas sugestões serão apreciadas no Congresso Nacional, onde foram apresentadas 106 emendas ao texto. Para responder as dúvidas, divulgamos um arquivo de perguntas e respostas online, atualizado periodicamente.
Estamos trabalhando em prol de um sistema tributário mais justo e eficiente. A MP de tributação das empresas offshore e desoneração das pessoas de baixa renda é um passo importante nessa direção.
Daniel Abraham Loria é diretor da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, professor e pesquisador do Insper.