Cristina de Pisano nasceu em Veneza, mas com apenas quatro anos mudou-se para Paris. Seu pai tornou-se secretário do rei francês Carlos V. Naquela época, meados do século XIV, as mulheres ocupavam um papel definido – e restrito – na sociedade, limitado às atividades domésticas.

Ainda jovem, Cristina casou-se com outro funcionário real. Contudo, em 1389, sua vida sofre uma reviravolta, com o falecimento prematuro do marido. Seu pai morrera pouco antes. Sem esteio, sem renda, sem homem, Cristina teve que encontrar forças nela mesma para sustentar a si e aos filhos. Passou então a escrever.

Embora aquele já fosse o “outono da Idade Média”, o analfabetismo grassava, principalmente entre as mulheres – a quem era vedado, inclusive, o ingresso nas poucas escolas. Cristina recebera educação diretamente dos pais e, dominando as letras, apresentou suas obras, incialmente poemas. A corte francesa aprovou.

Cristina de Pisano foi a primeira escritora do Ocidente, isto é, a primeira mulher a viver exclusivamente de sua produção literária. Mas o mais interessante: dedicou sua pena a denunciar o tratamento vil recebido pelas mulheres na sociedade.

A fama de Cristina cresceu quando, no início do século XV, ela apresentou sua crítica ao proto best-seller Romance da RosaRoman de la rose. Esta obra, de enorme popularidade, apresentava as mulheres de forma estereotipada, numa narrativa carregada de misoginia.

Mais precisamente, o Romance da Rosa possui duas partes, cada qual escrita por um autor. A primeira narra as peripécias de um cortesão para conquistar o amor de uma mulher. Na segunda, a história ganha um tom sarcástico, apresentando as mulheres como sedutoras, lascivas e sem firmeza moral.

Em A cidade das mulheres, Cristina de Pisano aponta suas armas contra o machismo. Inicia a narrativa contando que se encontrava “sentada um dia em meu gabinete, cercada por inúmeros livros, conforme meu hábito, já que o estudo das artes liberais é um costume que rege a minha vida”. Adiante, ela passa a divagar sobre o motivo de a mulher receber tratamento tão indigno, qualificada como um ser vil. Valendo-se da retórica, Cristina indaga por qual motivo o Criador faria “uma obra tão abominável”.

Absorvida nessa lamentação, Cristina conta que surgiram na sua frente, como num ato fantástico, três imponentes senhoras, que garantem ter vindo ali para consolá-la. Mais: após registrarem que “a Divina Providência não procede ao acaso”, as altivas figuras concitam Cristina a construir uma cidade – murada como se fazia então – a fim de proteger as mulheres das injustiças.

Na Idade Média, a cidade era um local cercado de altas paredes, cujo propósito era ao mesmo tempo proteger e segregar. A cidade isolava.

No livro de Cristina, a primeira dessas senhoras informa que tem “a missão de corrigir os homens e as mulheres nos seus erros, e orientá-los a seguir a via certa; caso se percam.” Trata-se da Razão.

A segunda senhora é a Retidão, que diz a Cristina: “Vivo entre os justos, a quem exorto a praticarem o bem, a devolver a cada um aquilo que lhe pertence, a dizer a verdade e a lutar por ela, a defender o direito dos miseráveis e dos inocentes, a não usurpar o direito alheio, a fazer justiça aos que mentem ao acusar.”

A terceira senhora se apresenta: a Justiça, a filha predileta de Deus, esclarece. “Não tenho amigos ou inimigos – diz – e por isso jamais cedo”. Ela julga conforme o mérito, garante.

A Justiça prossegue esclarecendo suas instruções às pessoas de espírito benigno: primeiro, devem “conhecerem-se e comportarem-se com os outros tal como consigo mesmos, a dividir seus bens sem nepotismo, a dizer a verdade, evitando e rechaçando a mentira e rechaçando o vício.”

Enlevada pelas três ilustres visitantes, Cristina de Pisano, em seu livro, leva adiante a empreitada de construir a cidade das mulheres, um refúgio moral feminino contra a intolerância dos homens.

Na obra, Cristina lista uma série de mulheres abusadas ao longo da história, como Safo, a rainha Ester, Dido de Cartago e as sabinas, além de acusar autores misóginos, entre eles Boccaccio. A cidade imaginada é povoada por mulheres famosas da antiguidade, todas vítimas de injustiças por sua condição.

A autora medieval cria esta extraordinária metáfora: a cidade, um local protegido, no qual as mulheres gozam de liberdade intelectual e têm condição de praticar suas virtudes. Faz-se necessário erigir uma muralha para defender as mulheres.

Ao fim do livro, exultante da cidade construída inteiramente com virtudes, Cristina de Pisano alerta suas leitoras: “Todas vós, mulheres de condição média e humilde, antes de mais nada, permanecei alertas e vigilantes para vos defender contra os inimigos de vossa honra e virtude”.

Já se vão mais de 600 anos da publicação da Cidade das mulheres. Desde então, outras poderosas vozes denunciaram o tratamento desigual às mulheres. Apenas para citar alguns marcos, em 1946 Mary Ritter Beard, a sufragista norte-americana, lança Woman as a force in history, delatando desrespeitos à condição da mulher ao longo do tempo, além de enaltecer o potencial feminino.

Simone de Beauvoir, em 1949, em O segundo sexo, questiona os “papéis sociais” destinados à mulher, provocando as leitoras, a partir da desconstrução dessas expectativas arquetípicas, a se “tornarem mulheres”.

Pouco adiante, a ativista Betty Friedman oferece o clássico A mística feminina, publicado no começo dos anos 60. Ela chamou de “O problema sem nome” a angústia da mulher que não encontrava seu lugar na sociedade, notadamente porque as portas estavam fechadas.

Avançamos.

Buscamos um mundo sem vigas de proteção.

A civilização caminhou para reconhecer a importância da inclusão. Não deveria haver sentido, no século XXI, uma cidade das mulheres. Não deveria haver motivos para se construir muros separando os seres humanos, qualquer que seja seu gênero. A Razão, a Retidão e a Justiça, munidas de conceitos éticos bem definidos, já nos ensinaram isso, pela inteligência de Cristina de Pisano.

Porém, da mesma forma, a obra clássica esclarece que “a providência não vem do acaso”. É necessário cultivá-la. Construí-la. Deve-se mais do que apenas extinguir o preconceito, cabe à sociedade tomar medidas proativas de integração. Portanto, se não mais se justifica uma cidade das mulheres, muito menos que “homens” reforcem suas muralhas.

O Brasil possui um órgão máximo no Poder Judiciário constituído por onze integrantes. Historicamente, um lugar dominado por homens. Em sua atual composição são todos homens, com uma única exceção. Desde sua criação, em 1891, este Tribunal contou apenas com três mulheres.

Nos Estados Unidos, por exemplo, dos nove integrantes da Suprema Corte, quatro são mulheres, quase a metade – e a última a ingressar foi uma mulher negra.

Sob nenhum aspecto essa disparidade de gênero se justifica. Trata-se de um desvio, remetendo aos abusos cometidos ao longo do tempo contra as mulheres, que apenas nos afastaram do caminho civilizatório. A representatividade feminina no Supremo Tribunal Federal tem força de um símbolo.

Há uma vaga aberta. E ela tem o poder de destruir o muro que nos separa.

José Roberto de Castro Neves é advogado, professor universitário, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.