Gilberto Gil, Itamar Assumpção, Bateria da Viradouro, Mestre Ambrósio.

A música é o fio condutor do tocante documentário Kubrusly – Mistério sempre há de pintar por aí, que narra a luta do jornalista Mauricio Kubrusly contra a demência frontotemporal, uma doença degenerativa que afeta a memória, a fala e a leitura (a mesma que acometeu o ator Bruce Willis).

Desde que recebeu o diagnóstico, Kubrusly vem paulatinamente perdendo habilidades que antes eram corriqueiras. Não se recorda do nome de mais ninguém, exceto o de sua esposa Beatriz Goulart, a Bia. Quando vê sua imagem refletida num espelho ou assiste a trechos de reportagens que protagonizou, não se reconhece.

De um dia para outro perdeu a capacidade de ler. Aos 79 anos, magro e com o olhar permanentemente perdido, ele é hoje uma sombra do repórter criativo e irreverente que nos acostumamos a ver por mais de três décadas à frente de reportagens na TV Globo.

Ao abordar um tema tão difícil, o documentário – disponível na Globoplay – poderia ser puro baixo astral. Mas Kubrusly sempre foi divertido e original, e o filme reflete isso, sem cair na armadilha de “romancear” a doença.

Dirigido por Evelyn Kuriki – uma ex-produtora no quadro Me leva, Brasil, protagonizado pelo jornalista durante mais de uma década no Fantástico – e por Caio Cavechini, o filme se baseia na trilha sonora da vida de Kubrusly para mostrar o que acontece com um contador de histórias quando ele não consegue mais reconhecer sua própria trajetória.

A obra ganha ritmo ao alternar cenas do jornalista e sua mulher em casa, na Bahia, depoimentos de amigos e colegas de trabalho, e cenas de arquivo. Uma delas é a primeira reportagem de Kubrusly na Globo, em 1985. Nela, o jornalista entrevista o diretor Cacá Rosset, do grupo de teatro Ornitorrinco, que encenava a peça Ubu, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes.

Sem se intimidar por ser um estreante, Kubrusly deu uma ligeira debochada no nome do espetáculo e ainda simulou ser um ator da trupe. Criou, de largada, um estilo único de jornalismo cultural na televisão.

A doença hoje o impede de recordar esses feitos.  Mas se há algo que ainda toca Kubrusly e mantém um fiapo de sua conexão com a realidade é a música.

Bia, sua esposa, conta que ele tem um IPod com 15 mil músicas e é o DJ da casa. Ainda que ele não identifique quem canta ou é o autor das canções que embalam o filme, se entusiasma com várias delas como se fosse a primeira vez que as estivesse escutando – de certa forma, sempre é.

Ri alto ao escutar o amigo Wandi Doratiotto, do grupo paulistano Premê (Premeditando o Breque), cantar Paixão nas Alturas, uma música hilariante que narra o improvável amor de um urubu por uma asa delta. Em outra cena, aparece num hospital, a caminho do centro cirúrgico.

O que faz antes de ser operado? Canta!

A parte mais emocionante do filme se dá quando Kubrusly se encontra com Gilberto Gil num estúdio no Rio de Janeiro. Antes mesmo de entrar, o jornalista ouve Gil tocando, abre um sorriso e começa a dançar discretamente. Quando se encontram, porém, o jornalista não o reconhece.

“O tempo deixou a gente por aqui e a gente foi ficando,” diz o cantor. Gil então começa a tocar Esotérico (um dos versos viria a se tornar o título do filme). Encantado com a música, o jornalista comenta com Bia: “Que lindo, hein? Quem fez isso?” É impossível não se comover com a cena.

Ao terminar de assistir ao documentário, imediatamente coloquei Esotérico para tocar em casa. Cantei alto. Dancei como se não houvesse amanhã. E pensei na delicada, frágil e mágica tessitura do cérebro – e da nossa vida.

Cristiane Correa é escritora e jornalista.