NOVA YORK — Na próxima sexta-feira, o New York City Ballet sobe ao palco do Lincoln Center para iniciar suas 50 apresentações anuais do Quebra-Nozes, um marco no calendário natalino da cidade.
Depois de um ano e meio de hiato imposto pela pandemia, os bailarinos retornaram ao trabalho em setembro, um prazo longuíssimo para uma carreira curtíssima: tirar um bailarino do palco é o mesmo que tirar um jogador de futebol do gramado.
O impacto físico e mental desta pausa na vida dos bailarinos foi tal que a crítica Gia Kourlas, do New York Times, resolveu acompanhar a rotina de três deles entre entre abril e setembro deste ano, descrevendo seus relatos em forma de diários diagramados em quatro páginas do jornal.
Um dos três era o solista Jovani Furlan, de 28 anos, de Santa Catarina.
Jovani viveu uma saga a mais: as primeiras semanas da pandemia coincidiram com um contratempo em seu visto de trabalho, que o obrigou a deixar os Estados Unidos às pressas em março de 2020 sem a certeza de um dia poder voltar.
À época, ele dançava na companhia por apenas seis meses, e acabou tendo que ficar um ano na casa da avó em Joinville. (Com a papelada resolvida, ele voltou a Manhattan em julho.)
“Eu não sabia o que seria da minha carreira,” Jovani disse ao Brazil Journal. “De qualquer forma, o diretor do New York City Ballet, Jonathan Stafford, dizia que a minha vaga estava garantida pelo tempo necessário.”
Não à toa. Em 12 anos, Jovani foi o primeiro bailarino a ser contratado de fora da companhia. O New York City Ballet tem uma escola própria onde forma seu corpo de baile, seguindo o método do lendário coreógrafo George Balanchine (1904-1983), conhecido por ter “americanizado” as clássicas técnicas francesas e russas. Ao todo, são 93 dançarinos, entre 19 primeiros bailarinos e 19 solistas.
Jovani veio para Manhattan do Miami City Ballet, uma companhia de menor escala, onde dançou entre 2011 e 2019. Aquela foi sua primeira experiência no exterior, que o transformou de aprendiz em primeiro bailarino.
Quando soube de uma vaga aberta em Nova York por causa de um pequeno escândalo no elenco, Jovani enviou um e-mail dizendo que, apesar de não ter começado a carreira na escola da companhia, “esperaria o tempo que fosse” para entrar ali.
Não teve que esperar muito. Recebeu um convite imediato para um teste, e logo em seguida um convite oficial.
Ao pisar em Nova York, sentiu a diferença.“Em Miami, apresentamos de 10 a 15 ballets ao ano. Em Nova York, são de 50 a 70. São 22 semanas de apresentações anuais. Só folgamos às segundas,” conta o catarinense, que usa seu tempo livre para flanar no Central Park e devorar livros.
Os bailarinos ensaiam de máscara e fazem teste de coronavírus a cada terça-feira. Aguardam 20 minutos para o resultado antes de pisar na sala de aula. (Também se exige vacinação e uso de máscaras na plateia.)
Na infância, Jovani não teve contato com o balé. Suas duas irmãs mais velhas jogavam futebol, mas o menino não fazia esportes. Inesperadamente, aos 10 anos foi pescado pela escola do Teatro Bolshoi. “Minha avó avisou que os russos iriam à minha escola auditar crianças, e disse para eu participar,” conta.
Criada na década de 90 com incentivo do então governador Luiz Henrique da Silveira, a escola do Bolshoi de Joinville é a única fora de Moscou.
Os russos pinçam alunos de escolas públicas a partir de 8 anos em busca do biotipo para a técnica Vaganova, usada pela escola: não é preciso saber dançar, mas ter proporções precisas, pescoços e braços longos, curva do peito do pé e joelhos que rotacionam para fora.
“Ao passar na prova, perguntaram quanto eu calçava, para ganhar sapatilhas. ‘Menino usa sapatilha?’ perguntei. A coordenadora tentou tranquilizar o garoto de que aquilo não era coisa ‘de menina’: “Os lutadores de boxe também usam.” (Jovani, que anos mais tarde se descobriu gay, hoje ri daquele momento.)
Mais da metade das turmas do Bolshoi é masculina, algo raro na realidade brasileira.
O Bolshoi oferecia bolsa integral, uniforme, alimentação, transporte, dentista, fisioterapeuta, nutricionista, almoço e dois lanches. Foram quatro horas de aulas diárias durante oito anos. As crianças aprendem teatro, literatura musical e da dança.
“O Bolshoi toma conta da sua vida; esta é a mentalidade russa”, diz Jovani. “Ainda assim, é preciso o incentivo dos pais. Meu pai era contra, nunca me contou, e ainda me levava para a academia.”
Aos 14 anos, graças a vídeos no YouTube, Jovani descobriu que o balé poderia ser profissão. Três anos depois, ingressou no Miami City Ballet e começou uma carreira internacional. No Brasil, faltam oportunidades sólidas.
“Temos o Grupo Corpo, a Deborah Colker, o Balé da Cidade de São Paulo e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Mas em geral, as oportunidades são escassas para a quantidade de talentos nacionais,” diz o bailarino.
Além da técnica, os brasileiros exportam graciosidade. “Nós trabalhamos em qualquer condição. A Gisele Bündchen disse certa vez que se ela limpasse o apartamento, você poderia lamber o chão. É assim que eu me sinto. Nunca fui para o balé para ser medíocre.”
O Quebra-Nozes fica em cartaz até 2 de janeiro.
Foto: Erin Baiano/NYC BALLET