PARIS – Enquanto a elite francesa desdenhava dos impressionistas e da Escola de Paris no final do século XIX, duas famílias russas, os Morozovs e os Shchukins, varreram o mercado.
Sem concorrência, os russos percorriam os salões de arte franceses comprando masterpieces de Monet, Manet, Gauguin, Renoir, Cézanne e Picasso.
Sem saber, estavam mudando o curso da arte moderna.
Além do olhar apurado e de vanguarda para a época, eles inauguram o que hoje se entende como colecionismo. Foram mais de 400 obras adquiridas de artistas rejeitados pelo establishment francês.
A história destas famílias é extraordinária e trágica ao mesmo tempo. Antes empresários ricos e colecionadores bem-sucedidos, viram suas coleções estatizadas e censuradas, e acabaram morrendo no exílio, sem bens, e com seus nomes apagados da história da Mãe Rússia.
Sergei Shchukin morreu em 1936 em Paris, onde teve filhos de um segundo casamento. Seu neto, André-Marc Delocque-Fourcaud, sonhou resgatar a memória do avô, um dos maiores colecionadores de todos os tempos (considerado até maior que os irmãos Morozov), e exibir sua coleção, avaliada hoje em US$ 10 bilhões.
Como nenhum museu teria dinheiro para organizar a logística e arcar com um seguro nesse patamar, André-Marc procurou Bernard Arnault, o controlador da LVMH e idealizador da Fondation Louis Vuitton, e apelou para o lado mais fraco de qualquer ser humano: o ego.
O neto de Shchukin disse ao rei do luxo que a única pessoa comparável a seu falecido avô era ele, Arnault, que também vem a ser um dos maiores colecionadores vivos.
Com Arnault on board, começava a tomar forma o plano de trazer as duas coleções para Paris e exibi-las na Fondation LV, sediada no extravagante prédio de Frank Gehry (que, diga-se de passagem, precisava de uma exposição blockbuster para fazer frente a sua grandiosidade).
Assim nasceu “Icons of Modern Art”.
A Parte I, a Coleção Shchukin, encantou mais de 1,3 milhão de visitantes quando foi exibida em 2016/17. A Parte II, a Coleção Morozov, estreou no ano passado e fica aqui até 22 de fevereiro. (Se você decidir não vir, que tenha uma justificava à altura.)
Tirar as obras da Rússia foi complexo: o mundo em plena pandemia e a Rússia num momento geopolítico delicado, em que Putin flexiona os músculos para expandir mais uma vez as fronteiras.
O trabalho hercúleo (diplomático e logístico) deu certo: quando a Coleção Morozov abriu, em 22 de setembro, estavam lá o Presidente Macron e diversos ministros de Estado dos dois países.
Os Morozov foram criados desde jovens em meio à arte, literatura e história e, como toda a elite russa, eram fluentes em francês. Mikhail, o irmão mais velho, escreveu livros e críticas de teatro, e Ivan construiu um teatro e pintava. Mikhail triplicou o patrimônio herdado e mantinha um lifestyle de altíssimo padrão: morava num palacete, viajava pelo mundo e mantinha um apartamento em Paris.
Foi ele quem levou para a Rússia o primeiro Gauguin e Van Gogh, bem antes de Shchukin. Depois da morte de Mikhail, Ivan assumiu os negócios, aumentou sua presença na cena artística parisiense com visitas frequentes, recebeu a Légion d’Honneur e comprou um palácio em Moscou que pertencia à aristocracia russa, decidido a fazer dele um museu particular.
Tudo ia bem até a Revolução Russa em 1917.
No ano seguinte, todos os bens de Shchukin e dos Morozov foram nacionalizados: as indústrias, os palácios, as coleções de arte.
Shchukin se exilou logo no começo na França. Ivan ficou e passou a ser funcionário do governo, trabalhando como curador assistente da sua ex-coleção. Morava com toda a família em três cômodos de seu antigo palácio (que passou a ser aberto ao público) até conseguir fugir ilegalmente do domínio bolchevista.
As casas de Shchukin e de Morozov viraram o primeiro e o segundo National Museum of New Western Art. A mulher de Trotsky mandou catalogar as obras e garantiu a segurança da coleção nos anos seguintes. Com a situação econômica deteriorada em 1930, os soviéticos decidiram vender algumas obras importantes de Van Gogh e Cézanne.
As pinturas que ficaram na Rússia foram armazenadas na Sibéria “como sardinhas”, segundo a curadora da exposição em cartaz, Anne Baldisseri. Stalin as detestava e proibiu sua exibição – por sorte não mandou destruí-las por completo. Após a morte do ditador, em 1953, algumas pinturas foram penduradas novamente no Hermitage sem identificação dos donos originais até 1981.
Um dos objetivos da curadora da exposição na Fondation LV é trazer os colecionadores e os pintores russos de volta à narrativa. A mostra abre com uma série de retratos de artistas russos do círculo Morozov. Nas diversas salas seguintes, encontra-se o melhor do impressionismo e modernismo francês.
Vale chamar atenção para as pinturas de Gauguin, Matisse e, principalmente, Cézanne. Deste último, seu artista favorito, Ivan possuía 18 pinturas. Ainda há uma grande galeria decorativa, com sete painéis de Maurice Denis, encomendados para a Sala de Música Morozov, juntamente com quatro esculturas antigas de Aristide Maillol.
Segundo a curadora, estes estão sendo emprestados pela última vez – nunca mais sairão do Hermitage. Outro destaque são os três excepcionais Picassos, produzidos com cinco anos de diferença entre si e que marcam a evolução da arte do espanhol. O conjunto da obra é simplesmente espetacular, e Arnault vai ter que se esforçar muito para igualar.
O final da exposição tem uma ênfase dramática, coerente com a história dos colecionadores. O público é levado para uma sala escura, no subsolo da fundação, com uma única luz focada no último quadro pintado por Van Gogh no hospital psiquiátrico, antes de morrer. A tela se chama “O prisioneiro”.