Quem pensa na Bienal de São Paulo, ou no Museu de Arte Moderna da cidade, lembra do grande industrial e mecenas das artes Ciccillo Matarazzo, que dá o nome ao pavilhão no Ibirapuera.

Se nos anos 50 era comum se dizer que “atrás de um grande homem existe uma grande mulher,” essa frase tão démodé não poderia ser usada para o casal Ciccillo e Yolanda Penteado. Yolanda nunca ficou atrás de Ciccillo, mas, ao seu lado, liderou os projetos culturais do casal em muitas oportunidades.

Yolanda não ser reconhecida como co-criadora da Bienal e do MAM é um grande erro histórico.

Ela não veio ao mundo para frequentar os bastidores. Dotada de grande personalidade, escandalizou a sociedade da época quando se divorciou aos 28 anos. Quando sua família faliu, com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, recorreu a Ciccillo para um casamento com interesses comerciais e culturais alinhados, sem muito romantismo. Oriunda de uma família quatrocentona paulista, com grande inserção no meio cultural do País, Yolanda era sobrinha de Olívia Guedes Penteado, patrocinadora do modernismo, amiga de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Heitor Villa-Lobos, figuras centrais da Semana de Arte Moderna de 1922.

Ciccillo, por sua vez, era um italiano industrial rico, que não tinha o prestígio social para cumprir seu objetivo de ser um grande mecenas. Yolanda conhecia todos os artistas e transitava com muita desenvoltura no meio artístico nacional e internacional. Foi tão marcante em sua época que virou personagem da minissérie “Um só coração”, da Rede Globo, que foi ao ar em 2004, sendo interpretada por Ana Paulo Arósio. Seu carisma era tamanho que conseguiu o feito de trazer para a 2ª Bienal de São Paulo o famoso quadro de Picasso, “Guernica”, que até então nunca saíra da Europa e pouquíssimas vezes viajou pelo mundo. 
 
A artista Maria Martins ajudou Yolanda com o trânsito junto a artistas americanos e europeus, trazendo obras de Paul Klee, Edvard Munch, Brancusi, Volpi, Mondrian, Alexander Calder. “A Maria fez a Bienal. A Yolanda Penteado era a inteligência por trás do Ciccillo, e a Maria Martins era a inteligência por trás da Yolanda,” contou Fernando Milan, que participou da 2ª Bienal, em entrevistas sobre a mostra de 1953.
 
Em 1961, Yolanda desliga-se da Bienal e se separa de Ciccillo, com quem viveu por 14 anos. Mas seu legado permanece: a Bienal de São Paulo se estabeleceu como um dos eventos mais importantes de arte do mundo, e semana que vem, mais precisamente em 20 de outubro, comemora 70 anos.
 
“Todos os grandes artistas do mundo foram apresentados aos brasileiros na Bienal, sendo que a maioria quando ainda estavam vivos e não eram consagrados,” o atual presidente, José Olympio Pereira, disse ao Brazil Journal
 
Esta 34ª Bienal, intitulada “Faz escuro mas eu canto”, teve que superar diversas dificuldades para abrir – um ano depois da data prevista.

A edição, iniciada em fevereiro de 2020, vem se desdobrando no espaço físico e online – com a mostra principal de 1.100 obras recém-inaugurada no Ibirapuera.

A curadoria é de Jacopo Crivelli Visconti, Paulo Miyada, Carla Zaccagnini, Francesco Stocchi e Ruth Estévez. Projeto arquitetônico do Andrade Morettin Arquitetos, com expografia das galerias por Metrópole Arquitetos Associados.

A distribuição entre artistas mulheres e homens é equilibrada (a começar pela curadoria com duas mulheres – algo raro), e com a maior representatividade de artistas indígenas de todas as edições com dados disponíveis (aproximadamente 10% do total). 

Entre os espaços mais bonitos está a sala de Eleonore Koch e Anna-Bella Papp, no primeiro andar. Lore Koch é conhecida como discípula de Volpi e, com sua morte em 2018, suas obras passaram a ser disputadas dentro e fora do Brasil. Anna-Bella, uma jovem artista romena que esculpe em argila o que vê ao seu redor, transforma sua arte em uma espécie de diário.  

As obras de Antonio Dias no pavilhão do Ibirapuera — e em cartaz também no Instituto de Arte Contemporânea (IAC) — são de tirar o folego. Estão reunidas pinturas escuras e textuais, produzidas a partir de 1968, que o artista chamava de ‘luto estético’ em função das políticas repressivas no Brasil. “A arte negativa para um país negativo”. Qualquer semelhança com a atualidade…

Simultaneamente à mostra principal há dezenas de exposições individuais em instituições parceiras na cidade de São Paulo. José Olympio destaca o diálogo da Fundação para descentralizar os espaços expositivos, ampliando seu alcance.

Como é difícil conseguir visitar todos os espaços, recomendo uma parada, fora do circuito tradicional dos grandes museus e instituições, na Casa do Povo, que fica no Bom Retiro e expõe as tapeçarias da coreógrafa e artista israelense Noa Eshkol, costuradas com trapos pelos próprios dançarinos de sua companhia e simplesmente deslumbrantes. Dentre as indicações do presidente da Bienal está a exposição do artista Alfredo Jaar, no SESC Pompeia.

O título da Bienal vem de um maravilhoso poema de Thiago de Mello, “Madrugada Camponesa,” de 1965: “Faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar.”

O poeta trata dos problemas e das esperanças universais de homens e mulheres, e dizia, “Estamos num momento em que o apocalipse está ganhando da utopia. Faz tempo que fiz a opção: entre o apocalipse e a utopia, eu fico com a utopia”.

Eu também.

 

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.