Entre 1974 e 1976, o compositor alemão H.J. Koellreutter, que viveu no Brasil, na Índia e no Japão, e o professor japonês Satoshi Takana, especialista em língua e cultura germânicas, mantiveram uma densa correspondência, cujo tema central eram as relações entre Ocidente e Oriente.
Em uma de suas cartas, Koellreutter observou que “a arte e a estética, no Japão e no Ocidente, se fundam em duas formas de consciência completamente diferentes, que, à primeira vista, parecem diametralmente opostas, mas que, no futuro, poderão vir a se completar.”
Já perto do fim da missiva, o músico sentenciava: “Parece importante para nós que, como consequência de uma sociedade planetária em construção, se inicie um desenvolvimento que pressuponha (…) a assimilação dos valores culturais orientais pelo ocidente, e dos ocidentais pelo oriente. …Porque nós (…), no futuro, só poderemos viver em comunidade.”
Esse futuro inclusivo e solidário de que falava Koellreutter encontrou na chef, professora e pesquisadora Mari Hirata, que nos deixou domingo passado, a sua mais perfeita tradução. Mari morreu em casa, na capital japonesa, onde vivia desde 2001, após nove meses de luta contra um câncer. Tinha 61 anos.
No âmbito profissional, Mari construiu uma trajetória que poderia ser definida como uma via de mão dupla entre Brasil e Japão. Já no plano pessoal, a chef – nascida em São Paulo de mãe japonesa e pai nissei – ficará na lembrança dos incontáveis amigos e fãs que acumulou nas duas nações como uma personalidade sobretudo agregadora.
Em ambos os aspectos, Mari era a empatia em pessoa. Nesses dias sombrios de pandemia e mortes em profusão, que outro sentimento teria maior capacidade de nos amparar – e fazer tanta falta?
“Mari Hirata foi uma embaixadora do soft power brasileiro em terras japonesas”, diz André Corrêa do Lago, embaixador do Brasil na Índia, que entre 2013 e 2018 ocupou o mesmo posto no Japão. Amigo da chef, ele a recebeu em solo indiano em outubro de 2019, no que seria a última viagem internacional de Mari antes de adoecer.
“Em um país como o Japão, de grande tradição culinária, ela conseguiu a aceitação da gastronomia brasileira – e era extraordinariamente respeitada por lá; no fundo, foi uma expert nas duas cozinhas”, diz o diplomata.
Mari tinha ainda um enorme interesse por arquitetura e construiu muitas pontes entre arquitetos brasileiros e japoneses. Respeitava profundamente qualquer profissional dedicado a aperfeiçoar sua técnica; admirava isso no artesanato japonês. Sendo ela própria “shokunin” (“artesã”), valorizava como ninguém o “espírito artesão” oriental – e fez desse traço a sua busca.
Mesmo para quem não fosse tão próximo de Mari, saltava aos olhos o modo como seus valores pessoais e profissionais eram inseparáveis – ao contrário do que se costuma supor, isso não é automático. Essa coerência de sensibilidade, por assim dizer, fazia que nela convivessem o rigor, o perfeccionismo japonês, com a improvisação, a leveza brasileira. A chef conhecia como poucos a sofisticação da simplicidade, a perfeição da imperfeição, a grandeza das pequenas coisas (com o perdão de tantos oximoros – todavia, não há outro modo de ser fiel a Mari).
É curioso notar como o seu perfil foi sendo formado.
Josimar Melo, amigo de juventude e jornalista especializado em gastronomia, lembra que, na década de 80, quando era estudante de jornalismo, a futura chef foi para a França. Ficou três anos, aprendeu a fazer doces, pães e, ao voltar, empregou-se no hotel Caesar Park da capital paulista. Na década seguinte, tomou o rumo do Japão.
Depois de um período de duro aprendizado, foi trabalhar na Toraya, a confeitaria oficial da família imperial, onde conheceria o confeiteiro Hisao Sato, com quem se casaria e teria dois filhos. Retornaria à França em meados dos anos 90, quando Sato foi enviado para o recém-inaugurado Café Toraya em Paris. Lá, Mari passou pelo Le Cordon Bleu e pelo L’Arpège. Em 2001, a família regressaria a Tóquio.
Àquela altura, a chef já iniciara vindas regulares ao Brasil para participar de eventos culinários e dar aulas. De volta ao Japão, prosseguiria ativa – incluindo em sua rotina a recepção às pessoas de estreito laço de amizade, ou indicadas por elas.
“Uma viagem para o Japão pode ser considerada como ‘a viagem da vida’ de qualquer um – é a descoberta de uma outra civilização. Mas viajar na companhia da Mari por terras japonesas, elevava a experiência a outra dimensão: os acessos, as conexões e as oportunidades que ela possibilitava faziam dessa jornada algo único e inesquecível”, afirma Tomas Alvim, editor e sócio da BEĪ Editora, que esteve ao nosso lado em todo o processo de produção do livro Mari Hirata sensei, lançado em 2016.
Ser uma aluna em estado de reverência pode ser uma experiência sublime quando a mestra é fascinante como Mari. Ela contagiou seus alunos com a sua alegria e seus ensinamentos, que serão honrados para sempre. Nada do que dizia ou fazia deixava de ter fundamento técnico e lógico. Tudo era relevante.
As discussões de processos em volta da mesa da cozinha, as visitas às feiras e aos mercados ao redor do mundo, as colheitas nas hortas e pomares e as refeições resultantes dessas façanhas, na casa das centenas, transformaram as vidas de todos os seus alunos. Aprendiam a fazer “comida de verdade,” a alimentar suas famílias e amigos e a gostar das expressões de gratitude e prazer dos que os acompanhavam à mesa.
Os alunos seguramente perpetuarão as experiências que estiverem ao seu alcance. Sem Mari nada terá a mesma graça, mas o prazer estará nos laços que ela criou, na convivência que suscita as memórias de alegria e delicadeza.
Mestra, “sensei”, era como gostava de ser reconhecida. Dizia, durante a feitura do livro: “Se não gostarem de minhas receitas ou não conseguirem fazê-las, eu não existo, eu sou professora.”
Toda uma legião de admiradores e amigos de Mari Hirata, na qual nos incluímos, está hoje entregue ao luto – mas não à melancolia. Isso não combinaria com a chef delicada e generosa que conhecemos.
Haydée Belda é arquiteta, cozinheira, e co-autora de “Mari Hirata sensei” (Editora BEĪ, 2016).
Marisa Moreira Salles é editora e designer de livros. Apesar de uma autodeclarada falta de talento, aprendeu a fazer pão com Mari Hirata.
As autoras dedicam esse texto a Emi, Sejima, Yukiko e todas as irmãs e amigas que tiveram o privilégio de conviver e aprender com Mari.