A única certeza sobre a pandemia talvez seja esta: nada será igual como antes. Tudo e todos mudamos. Como os demais negócios, as galerias de arte foram impactadas de forma desigual. Enquanto muitas fecharam ou enfrentam crises homéricas, outras nunca venderam tanto com tão pouco esforço (sem o custo de exposições, viagens e feiras de arte no Brasil ou no exterior).

Os artistas que não pertencem ao seleto grupo das galerias estabelecidas nas grandes capitais brasileiras sofreram ainda mais.

Igi Lola Ayedun nunca tinha pensado em empreender até o mundo fechar. Era artista nas horas vagas, tinha um ateliê na Vila Madalena, que dividia com outros artistas de sua geração, a maioria pessoas da comunidade queer e racializadas, que frequentam a cena underground paulistana e carioca. A necessidade forçou Igi a usar sua experiência profissional, adquirida no mundo da moda e em comunicação, para abrir, com seu irmão, a primeira galeria fundada e dirigida por pessoas pretas no País.

11679 a15e3245 f817 1e48 b110 5e2763c8abc4Com pouco mais de um ano — e um ticket médio mais baixo que as galerias tradicionais — a Galeria HOA é um sucesso operacional e já está abrindo um escritório de representação em Londres nas próximas semanas. Igi disse ao Brazil Journal que seu foco é dar mais visibilidade aos artistas marginalizados e criar meios para que possam se desenvolver de forma sustentável.

Fui com muita curiosidade conhecer a HOA, que fica no Edifício FSMJ, na Rua Amaral Gurgel, n. 344. O Centro de São Paulo foi mais atingido que outras áreas da cidade durante a pandemia, com poucas exceções de revitalização e inauguração de novos negócios. O prédio que agora abriga a HOA é um dos ‘happy few’ que tiveram êxito na pandemia.

Peço um carro no aplicativo. Quando chegamos ao destino, o motorista pergunta: “Tem certeza que é aqui que a senhora vai ficar?”

De fora, o prédio parece abandonado, marcado por pichações, cartazes velhos rasgados e pintura descascada. Não dá para imaginar que ali – em meio a essa ruína urbana – está uma vida cultural pulsante atinada com a mais nova vanguarda da arte: as minorias que quebram barreiras e se impõem pelo talento.

Entrando no prédio, ainda em reformas, chama atenção a qualidade da construção: escadas e corredores largos, janelas até o chão que permitem uma generosa entrada de luz ao local. O retrofit está sendo comandando pela Planta.Inc, que decidiu renovar o interior com tudo de mais moderno, deixando o exterior com a marca do tempo e da história do prédio, que pertencia à Santa Casa e ficou abandonado por mais de 20 anos.

A HOA fica no quinto andar, em um espaço relativamente pequeno, e representa 14 artistas, com uma variedade de mídias, desde pinturas até obras NFT. Impressiona como em tão pouco tempo a galeria lançou no mercado uma nova leva de pintores figurativos e abstratos – a maioria mulheres negras. Alerta: conseguir comprar algumas tem se provado uma via crúcis para alguns colecionadores.

Nascida e criada em São Gonçalo, uma das cidades mais pobres do estado do Rio, a talentosíssima Laís Amaral tem 28 anos e uma fila de espera para suas obras.

Laís faz parte da mostra “Somos aquelas que permeiam o abismo em busca das frestas”, que abriu este mês no Instituto Tomie Ohtake e também traz trabalhos recentes de Ana Lira e Helen Salomão feitos durante a pandemia.

Laís se apresenta como artesã-artista. Estudou Serviço Social na Universidade Federal Fluminense e fundou o Levante Nacional TROVOA, um coletivo de artistas visuais e curadoras racializadas que reúne gente das cinco regiões brasileiras. Suas pinturas são abstratas e testam os limites entre artesanato e arte, com um traço original, livre e dotados de muita personalidade.

11680 53e49c67 ee10 08a2 0cc4 049f1e08b74aOutra artista da HOA que está chamando atenção é Larissa de Souza, que terminou uma individual na galeria há poucas semanas e atraiu muitos colecionadores para checar in loco suas obras figurativas.

Larissa tem 25 anos e é da Zona Leste de São Paulo. Na sua infância difícil — filha de uma mulher preta que a criou sozinha sem ter onde morar, constantemente mudando de casa — Larissa viu muitas outras pessoas enfrentando a mesma realidade.  A questão da moradia se tornou um tema recorrente em suas obras, assim como o retrato de mulheres negras.

A visita à HOA ainda me proporcionou conhecer a recém-inaugurada Gato Sem Rabo, a primeira livraria de São Paulo dedicada apenas a mulheres. Com uma seleção primorosa de escritoras, pesquisadoras, cientistas e poetas de todas as nacionalidades, a ex-modelo e agora empreendedora Johanna Stein — uma das embaixadoras da marca Chanel — criou um ambiente perfeito para se descobrir mulheres fantásticas até então pouco conhecidas.

“As mulheres sempre escreveram muito, sobre diversos assuntos, mas estavam condenadas a obrigações sociais que as mantinham longe da produção literária. Nós conquistamos mais espaço, mas ainda existe um vazio, um buraco na história, e a gente precisa garantir que nenhuma mais seja deixada para fora das prateleiras das livrarias”, Johanna disse ao site Universa dias antes da abertura da Gato Sem Rabo.

Para terminar com chave de ouro a visita cultural, nada melhor do que comer e beber bem com uma bela vista para Gotham City. E para isso recomendo ir ao Cora, o sofisticado restaurante que o chef argentino Pablo Inca, ex-Arturito, abriu recentemente no último andar.

Em pouco tempo, o número 344 da Rua Amaral Gurgel virou um dos lugares mais vanguarda de São Paulo. Se hoje se clama por mais cultura, literatura, arte, diversidade e inclusão de grupos pouco representados, o futuro está lá.

 

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal. A foto que ilustra este post é de Eduardo Magalhães.