Quando a Gol anunciou que iria renovar sua frota com a nova geração de jatos 737 MAX, um grupo de engenheiros e pilotos que cuidam da certificação de aeronaves na ANAC viu uma oportunidade rara: usar o processo como uma espécie de ‘MBA em certificação’.

Ao certificar o equipamento mais vendido da história da aviação comercial, a ANAC aprenderia mais sobre o processo, o que a ajudaria na certificação dos aviões da Embraer. (A ANAC já certifica os jatos da Embraer há anos, mas não é todo dia que a fabricante apresenta um novo modelo.)

Normalmente, ao certificar um avião de outro país, as agências de todo o mundo costumam seguir as recomendações do regulador do país de origem do fabricante.

No caso do MAX, a Boeing e a FAA –  o regulador americano – diziam que os pilotos que já voam no 737 não precisavam passar por novos treinamentos dada a similaridade do modelo com a geração anterior.

Mas antes de simplesmente acatar as recomendações da FAA, o Grupo de Avaliação de Aeronaves da ANAC resolveu estudar a fundo os manuais do avião.

No grupo, há servidores com larga experiência no setor, como o engenheiro Guilherme Macedo, formado pelo ITA e ex-funcionário da Embraer, e o piloto Roberto Janczura, que trabalhou por mais de 20 anos na Varig e aposentou o manche depois de uma carreira na Gol, com milhares de horas de voo no 737.

Ao ler os manuais, Janczura, Macedo e mais um colega – o piloto Sérgio Simões – encontraram mais de 60 diferenças na operação dos dois modelos, e concluíram que os pilotos deveriam sim passar por treinamento.

No início, houve a pretensão de exigir uma sessão de quatro horas em simulador, mas a medida acabou descartada por uma razão prática: não havia, na época, um simulador habilitado para o treinamento com o MAX.

Em outubro de 2017, o time da ANAC foi até Miami para uma avaliação operacional do MAX.

No final, a ANAC manteve a exigência de treinamento, mas em um formato bem mais simplificado: três horas de CBT (computer-based training) seguido de um teste online.

Esse tipo de treinamento é realizado num iPad ou computador do próprio piloto em casa – praticamente sem custo. “O CBT depende da leitura e do entendimento do tripulante e costuma ser reservado para assuntos menos importantes”, diz um piloto veterano. 

No treinamento exigido pela ANAC, o MCAS – o software que leva à estabilização automática do avião e que está sendo apontado como pivô dos dois acidentes fatais envolvendo o MAX – era uma dentre as mais de 60 novidades do MAX, e não um item que demandasse uma atenção especial.

Ainda assim, os pilotos da Gol foram os únicos do mundo a passar por treinamento obrigatório e, portanto, a tomar conhecimento formal da existência do MCAS. 

As investigações das quedas têm se concentrado no funcionamento do MCAS e em possíveis falhas no sensor de ângulo de ataque – que determina o quanto o nariz do avião está apontado para cima ou para baixo em relação ao movimento do ar. Problemas no sensor podem ter levado a um mau funcionamento do MCAS, confundindo e desorientando os pilotos.

Depois do primeiro acidente, com o avião da Lion Air, em que 189 pessoas morreram, a Gol elaborou um novo treinamento para a sua tripulação, desta vez especificamente sobre o MCAS.

Nos Estados Unidos, os pilotos que voam o MAX só ficaram sabendo da existência do MCAS quando a Boeing divulgou um comunicado após o acidente na Indonésia, segundo relato do The Washington Post.

“Eles achavam que a gente não precisava saber”, diz um piloto de 737 que conversou com o Brazil Journal. A omissão proposital é parte de um esforço da fabricante americana de reduzir o volume de informações passadas ao piloto. “Você não precisa saber quantos graus. Tem que saber que não pode deixar o ponteiro chegar na linha vermelha”, diz esse piloto.

O esforço de não sobrecarregar os pilotos com informação é bem-vindo, mas, segundo ele, à luz do que se sabe hoje, não poderia ter incluído o MCAS.

Esse tipo de sistema de automação, em que o avião faz correções automáticas sem passar pelo conhecimento do piloto, não faz parte da filosofia da Boeing.

A fabricante americana é conhecida por uma engenharia na qual o piloto tem “full authority” sobre o avião – diferentemente da Airbus, cujos aviões são dotados de um volume maior de comandos automáticos.

“Um piloto que fez carreira voando os 737 mais antigos tem menos chance de se valer da intuição para desligar um sistema automático que esteja atuando de forma defeituosa – e menos ainda se ele nem souber que o sistema automático existe”, afirma outro comandante.

Após dois acidentes em cinco meses, pilotos de 737 ouvidos pelo Brazil Journal acreditam que a simulação de pane no MCAS passará a constar do treinamento anual obrigatório dos tripulantes, que inclui procedimentos de emergência que os pilotos precisam saber de memória, sem consultar manuais.

A Gol tem sete jatos 737 MAX 8 na sua frota, hoje no chão após o acidente da Ethiopian. A empresa decidiu suspender as operações no dia seguinte ao acidente – antes mesmo de uma determinação da ANAC. Desde que o avião entrou em operação na Gol, em junho do ano passado, 2.933 voos foram realizados e não houve nenhum incidente reportado.


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